quarta-feira, 1 de agosto de 2012
MUDA RECREIO: Iniciaremos nosso Governo com a Implantação em car...
MUDA RECREIO: Iniciaremos nosso Governo com a Implantação em car...: FOCOS ESSENCIAIS DE NOSSO PLANO DE GOVERNO Iniciaremos nosso Governo com a Implantação em caráter de urgência da Gestão Part...
domingo, 12 de junho de 2011
MINISTRO
JOGOU FORA 14 MILHÕES DE REAIS
Fátima
Almeida
A notícia de que uma empresa de
consultoria de Antonio Palocci, ex-chefe da Casa Civil, ganhou vinte milhões de
reais em quatro anos, é mais um escândalo de uma serie que vimos acompanhando
desde quando iniciou a chamada Nova República. Parece que nunca vai ter fim.
Pela internet passam, a toda hora, anedotas, charges ridicularizando os
políticos brasileiros, com criatividade e variedade, parecendo um velho teatro,
uma velha peça com atores decadentes nos quais a platéia fica a atirar repolhos
e ovos podres.
Há mais de vinte anos eu soube de um homem que
havia vendido suas coisas e vindo para o Acre com dinheiro para comprar uma
casa no momento em que Fernando Collor de Mello lançou o Plano Collor. Sua
prima e Ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, confiscou a poupança dos
brasileiros, acima de cinqüenta mil cruzados novos, tendo avisando apenas aos
seus amigos, na véspera. Aquele homem morreu de infarto. Eles, que estavam na
condução do Estado queriam resolver o problema da inflação que estava a mais de
80% ao ano, pouco se lixando para o pânico e o desespero da sociedade.
Em entrevista dada à Época, setembro de 2002,
Zélia disse que ao andar pelas ruas quando vinha ao Brasil de férias, já morando
em Nova York, as pessoas a confundiam: “a senhora é atriz”? Eles me conhecem de
algum lugar, mas, não sabem de onde, disse. Uma evidência de que a população
brasileira, a grande maioria, não tem capacidade para entender ou analisar os
noticiários muito menos identificar os atores e seus papéis no meio político
brasileiro. Por isso, Collor é senador outra vez, apesar do impeachment e do
esquema PC Farias quando várias pessoas foram assassinadas.
Nenhuma escola de Alagoas poderia aparecer
no ranking das 50 melhores. A Matemática ensina a raciocinar e abstrair. A
Língua Portuguesa a ler e interpretar.
Nesta
semana, a Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado aprovou requerimento da senadora tucana Marisa Serrano do Mato Grosso
do Sul - cuja capital tem escolas que aparecem no ranking das 50 melhores do
país - em que ela pede ao Ministério da Educação informações sobre os sete
milhões de exemplares de livros didáticos com erros de diagramação e revisão que
foram distribuídos em escolas da zona rural, entre eles um livro de matemática
que traz erros como 10 – 4 = 7 e 16 – 8 = 6. Coisa que nem mesmo nos Governos
Militares se permitiu. Bom, os militares nunca gostaram mesmo dos políticos a
quem chamavam de “casacas” e o povo logo depois de “vira casacas”. Partiu de
jovens oficiais um movimento para derrubar a primeira república, um verdadeiro arranjo de oligarquias regionais
que se perpetuavam no poder com o chamado voto de cabresto e seus respectivos
“currais eleitorais”. O coronelismo era típico de regiões agrárias, não industrializadas,
com maioria de analfabetos.
Na Nova República o coronelismo
ressurgiu com nova roupagem. A maioria continua analfabeta, apesar de cada indivíduo
ostentar um celular com dois chips. A figura tradicional do coronel
desapareceu, mas, as práticas da maioria dos políticos de hoje são uma
adaptação do voto de cabresto e do curral eleitoral aos tempos atuais. É muito
fácil reconhecer num assessor que usa boas roupas e ostenta título de doutor, o
antigo jagunço, agora sem cartucheiras, a intimidar servidores públicos em
greve, por exemplo.
Aqueles exemplares que foram
distribuídos ano passado em 40 mil escolas do meio rural que atendem 1 milhão e
300 mil estudantes em todo o país, custaram
14 milhões de reais! Somente em fevereiro de 2011 foram constatados os referidos
erros, mas, a suspensão do uso desse material, por ordem do ministro, só
ocorreu nesta quinta-feira, dia 2 de junho, quando os professores foram
orientados a usar somente outros livros “pois o material com erros servia apenas
de apoio e poderia ser dispensado”. O MEC, portanto, despejou 14 milhões de reais no lixo. Mesmo
assim, o ex-presidente Lula elogiou e premiou o atual ministro por ele ter
“elevado o patamar da educação no país”.
O
ministro Haddad aprovou, comprou e fez distribuir um livro de Português para
turmas de Educação de Jovens e Adultos em 4.236 escolas com 484.195 alunos que
contém frases redigidas de forma incorreta tipo “nós pega o peixe’ porque, na
opinião dele, ministro, o MEC deve
estimular o ensino da linguagem popular. O livro Para Viver Melhor é de autoria
da professora aposentada da rede pública de São Paulo, Heloísa Ramos, que também dá cursos de formação para
professores, a qual se justifica dizendo que a proposta visa combater o
preconceito e a desigualdade social. Segundo Heloísa Ramos, os alunos adultos
sentem-se intimidados e, lendo do modo
como falam podem se sentir mais relaxados
para aprender a norma culta. Mas, ela reconhece que o professor precisa
entender a sua proposta caso contrário pode desvirtuar o que o livro propõe.
Muitos lingüistas entendem que o uso
da língua popular no ensino ajuda os estudantes das classes populares a se
sentirem incluídos, e, com isso, aprender com maior facilidade a norma culta.
Outros, acreditam que esta prática pedagógica limita a ascensão social dos
próprios alunos. Para o ministro isso é
uma falsa polêmica, apesar de que a mesma existe entre os lingüistas há mais de
quarenta anos. ..
Falar de forma errada é um hábito
que se adquire em meio familiar e num grupo social muito carente. A escola
pública foi criada exatamente para a superação disso e para possibilitar a ascensão
social através do estudo. A desigualdade social é decorrente da má distribuição
de renda. Não vai ser imprimindo o modo de falar dos mais carentes que vai
acontecer inclusão. Como lembrou Carlos Eduardo Novaes do JB, a Gramática é a Constituição
do idioma nacional, a linguagem oral é para ser falada e toda palavra impressa
deve obedecer ao que manda a gramática, caso contrário, vira um vale tudo. Inclusão
é empregos e salários dignos.
A Educação precisa mesmo é de grandes
investimentos, sejam públicos ou privados e isso não tem a ver com superioridade
dos grandes centros e inferioridade dos estados pobres. Teresina, Ilhéus e
Itabuna têm escolas que apareceram no ranking entre as 50 melhores do país. Em
Porto Velho, na Av. Calama, uma escola está entre as quatro melhores particulares
do país, a Maple Bear Canadian School e que nem deve faturar 4 milhões em 4
anos.
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MINISTRO JOGOU FORA 14 MILHÕES DE REAIS
domingo, 13 de março de 2011
Sem rumo, sem direção
Fátima Almeida*
A Agência Globo divulgou há dois dias que o Brasil não aparece com
nenhuma instituição entre as 100 melhores universidades do mundo,
segundo o ranking elaborado pela organização Times Higher Education.
A Universidade de São Paulo aparece em 232ª posição e findou por
representar toda a América Latina. A Universidade de Harvard nos
Estados Unidos é a líder, com pontuação máxima em todos os critérios. O
ranking que foi montado a partir de uma pesquisa para convidados de
mais de 13 mil professores de 131 países reforça a posição dominante das
instituições dos EUA e consagra a boa reputação das universidades do
Reino Unido e Japão.
A Rússia e a China aparecem entre os cinqüenta melhores. Entre
aqueles da 51ª a 100ª posições encontram-se as universidades de países
como Coréia do Sul, Seul, Taiwan e Índia. Países estes que executaram um
amplo programa de educação baseado nas ciências exatas, chegando a
importar, em alguns casos, cientistas de países como Escócia e Holanda,
atingindo por isso um alto crescimento no campo técnico-científico.
Como se sabe o Brasil e toda a América Latina foram colonizados por
países ultra-católicos que estavam em campanha contra protestantes,
judeus, ciganos e hereges em geral, constituindo um verdadeiro exército
de missionários, os jesuítas, voltados para a catequese, ficando a seu
cargo o ensino no Brasil, por trezentos anos, de acordo com a pedagogia
tradicional, baseada por sua vez na repetição e na memorização enquanto
método e conservadora quanto aos conteúdos para impedir que os ventos
da ciência moderna chegassem aqui com a observação, a experimentação, o
método analítico, gerando uma sociedade relativamente atrasada e ainda,
obediente e passiva quanto à autoridade real.
Manter as comunidades sob a autoridade de Deus e, por conseguinte, de
seus representantes na terra, as autoridades eclesiásticas e os
monarcas ungidos sempre foi um firme propósito da Igreja Católica, em
sua perspectiva de universalismo cristão. A ruptura com esse estado de
coisas ocorreu na França revolucionária e demais países rompidos com a
igreja romana, tais como Reino Unido e Estados Unidos da América.
É muito importante que as pessoas compreendam essa vinculação entre a
educação enquanto sistema de ensino, o modo como são ordenados os
conteúdos e determinados os métodos de ensino e avaliação e os
mecanismos de constituição do Poder. Esse é o calcanhar de Aquiles da
sociedade brasileira como um todo, pois, ao se orgulhar do crescimento
econômico não pode esconder suas agudas contradições, em especial a
profunda desigualdade social que é produto também da má formação
intelectual das camadas médias e baixas.
Todos os anos milhares de jovens se empenham em conseguir vagas nas
Universidades públicas como se elas fossem senhoras aristocratas, sem
atinar para as diferenças existentes entre elas precisamente porque são
constituí-das nas e pelas sociedades onde estão inseridas refletindo ou
reproduzindo seus avanços e retrocessos, seus vícios e virtudes.
Os universitários de hoje em dia não conseguem mais fomentar a
mobilização nem os debates nas universidades públicas, estão como que
imobilizados como todos os demais setores pelo excesso de individualismo
que aportou no Acre, para ficar para sempre, devido ao empreguis-mo na
máquina pública, coibindo ou inibindo formas de luta baseadas no
coletivo pelo coletivo.
Isso me parece muito ruim porque o movimento estudantil já foi
propulsor de mudanças importantes na sociedade brasileira. Para a minha
geração ir para a Universidade tinha o significado de participação e
envolvimento com a luta política pela redemocratização e conquistas
importantes que, aliás, culminaram com a constituição de 88. Hoje em dia
busca-se tão somente um diploma e um emprego, não interessando por
quais vias. Cada um por si.
Já ouvimos e até reproduzimos elogios à Zona Franca de Manaus pelo
fato de que o emprego na indústria de eletrônicos reduz ou elimina a
pressão sobre as florestas, não ocorrendo desmatamento de forma
acelerada e gravíssima como ocorre aqui, tanto que o inverno mal
terminou e já podemos ver as carretas carregadas de pesadas toras,
cruzando a 364, vindas da floresta estadual do Antimari.
Ocorre que na Zona Franca fabrica-se muito lixo, em última instância,
pois os artefatos eletrônicos têm vida curta e seu destino é o lixão.
Não há produção de conhecimento, os operários apenas montam e ajustam as
peças. Mesmo assim, é inegável que a Universidade do Amazonas, em
parceria com o INPA, ultrapassou a do Acre em matéria de pesquisa sobre
potenciais regionais para processamento de forma equilibrada ou
sustentável gerando emprego e renda.
Em todos os segmentos da indústria brasileira, mesmo o de aviões e o
de navios, em que pese existir mão-de-obra barata e abundantes
matérias-primas, as tecno-logias sempre são importadas. O que explica o
fato de que a Universidade brasileira figure entre as últimas.
Não se conhece os critérios do tal ranking, mas, com certeza se
referem à capacidade técnico-científica, essa que foi inaugurada na era
moderna e nunca mais parou de fabricar artefatos, eletrônicos,
geringonças de todo tipo para tornar a vida mais confortável, em
prejuízo dos ecossistemas no mundo inteiro começando com a destruição
dos bosques de cedros do Líbano, das matas de Portugal e Espanha, e com
a destruição da floresta atlântica no Brasil em razão da extração de
corante vermelho das árvores de Pau-Brasil para a indústria têxtil e
européia, só para nomear os exemplos mais notórios.
O que parece confortável tipo lâmpadas, isopor, plásticos e tudo o
mais que é descartável e não biodegradável é produto desse empenho
técnico-científico das potências. Portanto, essa má colocação no ranking
não deve ser problema nem nos preocupar e sim a demora ou as
dificuldades que a Universidade brasileira tem para apresentar um modelo
alternativo de pesquisa científica que enfatize a sustentabilidade,
permeando todos os campos do saber e enfocando os diversos biomas. Mas
ela ainda não sabe o que fazer nem como fazer. E isso é muito pior do
que não aparecer entre os melhores no ranking.
[* Acreana, Historiadora, Professora Universitária, Escritora e Articulista da Gazeta do Acre]
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sem direção,
Sem rumo
sábado, 5 de fevereiro de 2011
Luiz Felipe Jardim
Alguns amigos, algum dia, dirão que só não tenho
memória de cera porque sou a própria cera que envolve a memória.
Menos. Menos, amigos. Sei que tenho muito
boa memória, mas sei também que não é tanto assim. Não me lembro de muita coisa
que gostaria de lembrar. Por exemplo, gostaria de me lembrar de quando eu tinha
quatro, cinco, ou então ali pelo comecinho dos seis. Mas não, não consigo me
lembrar de nada dessa época. Só comecei a dar conta de mim realmente, só
comecei saber que existia, quando eu estava ali na curva dos seis meses, nos
seis meses e meio mais exatamente. Só a partir daí é que começo a me conhecer
como gente.
As minhas primeiras lembranças são as dos
sons. Especialmente as de um som permanente, suave, profundo, ao qual eu me
sentia umbilicalmente ligado. Foi ouvindo aquele som, na quase profunda
calmaria do mundo, que eu me senti pela primeira vez. Senti que existia. Que eu
era eu. Ali eu nasci em mim.
É bem certo que para o mundo lá fora eu nem
existia, portanto eu nem era eu ainda. Ainda mais que eu não podia estar
sozinho por nem um minuto. Por isso, por estar ali num paraíso, eu existia,
aproveitava e curtia a vida. Sim porque não
havia muita coisa a se fazer além de crescer. Eu já me ocupava demasiado em fazer
o meu coraçãozinho ficar maior, em dar um pouco mais de cor aos meus olhos,
coisinhas assim. Mas para passar o tempo e entender melhor outras coisas dei
asas aos meus ouvidos e me pus a escutar. E foi nas asas dos ouvidos que percebi
que aquele som contínuo, agradável e vital que eu ouvia e sentia, pulsava num
ritmo de 72 batidas por minuto. É esse o ritmo com que pulsam os corações dos
humanos adultos. Só bem depois vim saber que os bebês humanos, quando no colo
das mães, esperam que elas os abracem de modo que seus ouvidos fiquem o mais
perto possível do coração. O que eles querem é ouvir aquele som, naquele ritmo,
no ritmo do coração. No ritmo em que eles entraram no mundo.
Entraram no mundo é uma maneira de dizer.
Porque o mundo do útero, o mundo por aonde todos chegam à vida, é outro mundo. Aí
você não anda, não fala, não sente gosto, nem mesmo respira com seus pulmões...
sô!!!! Mas ouve. Logo aos seis meses, ouve. E o primeiro som é sempre aquele, o
de 72 batidas por minuto. O som do coração que dança a sua dança da vida.
Na falta de outros estímulos eu ouvia. E
envolto por uma temperatura morna, também constante, eu me sentia
permanentemente abraçado por um abraço total, suavemente quente, que envolvia
cada ponto meu e me protegia com sensações boas e poderosas.
Afora isso eu flutuava. Sabe aquela
sensação que a gente fica tendo, de vez em quando, depois de passar longo tempo
andando de barco, ou depois de ficar muito tempo imerso em águas que ondulam? A
gente fecha os olhos e sente como se estivesse flutuando; como que estivesse
sendo carinhosamente embalados por pequenas ondas que vão e vêm silenciosas e
prazerosas. Pois essa sensação é quase que uma reminiscência daquelas que
tínhamos quando ainda no útero. Envoltos no líquido amniótico, também nos
balançávamos quando nossas mães se movimentavam. Num movimento harmônico,
sonoro, quente, prazeroso.
Essas são as primeiras notícias que posso
dar de mim de quando me conheci: que eu estava envolto por um abraço total, quente
e permanente; que eu flutuava num embalo suave e prazeroso; e que eu ouvia as
batidas do coração de minha mãe. 72 pulsações por minuto. O ritmo de pulsação do
paraíso.
Mas todo paraíso é só um ninho. Um espaço
de passagem. Um espaço natural para o pouso ágil, fértil e fugaz. Um espaço grávido
de encantamentos, onde a vida pousa, nasce e vive. Mas de onde a vida deve sair
rapidamente para que possa nascer e viver.
Sair rapidamente é maneira de dizer. De lá
não se sai. De lá se é expulso. Para sempre. De lá se é lançado fora, para
nunca mais voltar.
De repente, em poucas horas, a erupção de
uma fúria opressora se apossa daquele universo e o paraíso é violentamente
destruído. O abraço total, sonoro, carinhoso e reconfortante, no caos em que tudo
se transforma, é agora apertos que esmagam. Tudo o que existe e é bom é impiedosamente
destruído para que aconteça a experiência mais traumática de toda a nossa vida:
Nascer. E nascer não é fácil. Ninguém
aprende a nascer antes do ato. Quando se vê já se está nascendo, numa viagem
sem volta. Nascer se aprende nascendo. Ou você nasce ou não nasce. Ninguém pode
nascer por você. É certo que essa pressão do ‘ou nasce ou não nasce’, mais os
empurrõezinhos que mãe e natureza dão, facilitam um pouco mais as coisas, mas
não torna nada fácil o nascimento.
Não é sem motivos que os bebês chegam ao
outro lado da vida aos berros e prantos, com uma tensa e convulsa expressão da
mais pura e profunda desesperação. É que
eles trazem consigo o sentimento de quem foi expulso do paraíso às cegas, e às
cegas, chegou a um mundo que ainda não vê.
E quando se vê... nasceu!!! Quando se
percebe, se está no mundo!!! Literalmente num vale de lágrimas. Nascido.
Nascido é maneira de dizer. Ainda há muito
chão, nos caminhos de quem mal começou a sugar ares com o próprio fôlego.
Sugar o ar, respirar é a primeira coisa que
fazemos quando nascemos. É essa a marca de nosso nascimento. É esse o carimbo com
o qual a natureza oficializa nossa nascença. Mas o choro rouba a cena. É que em
cinco ou seis segundos após o nosso primeiro alento, começamos a chorar. A
chorar e a mover cabeça, braços e pernas. Nosso berro pode ser ouvido à
distância, e isso impressiona mais aos humanos que o ato mais silencioso e
sutil de respirar. Daí que somos mais uma vez carimbados com simbólica certidão
de nascimento. Desta vez pelo choro em que nos pomos logo ao nascer. Por cerca
de meia hora choramos, protestamos, nos sacudimos, até que caímos em nós
mesmos. Uma vez dentro de nós, nos abrigamos em largo e profundo sono.
Não nos lembramos de quando estávamos
sonhando o sonho do nosso primeiro sono. Mas sei que sonhamos o sonho que todos
sonham pela primeira vez. Sonhamos com sons e flutuações, com luzes e prantos e
com música. Uma música especial, própria, bem particular. Uma música que
somente quem a tem sabe ouvir, sentir, dançar ou cantar. Uma música de 72
batidas por minuto. Que passa a existir dentro
de cada um de nós.
É com essa música embalando nosso primeiro
sono que ainda em nosso primeiro sonho nos encontramos com nossa alma. Quando a
reconhecemos, nos abraçamos num abraço tão envolvente, tão profundo, tão
intenso que nos fazemos um. Mas por sermos agora nós e nossa alma, e não
podermos mais ser só nós ou só nossa alma, resultamos em mais um ainda, que é o
termo da fusão de nós e nossa alma: o nosso espírito. Os três que agora somos um,
nós, alma e espírito, celebramos nossa comunhão, com a dança da vida, a 72
pulsações por minuto.
Nesse momento, em que dançamos, estamos tão
profundamente imersos em nós mesmos, que nada nos acordará da celebração da
vida que estamos a fazer. Na verdade, estamos nascendo mais uma vez. Agora de
uma maneira sutil, espiritual, imaterial, mas nem por isso menos intensa ou importante.
Nesse outro nascimento nos encontramos com os elementos simbólicos fundamentais
que dentro de nós darão formas às fisionomias que viremos a ter por toda a
nossa vida. É aí que encontramos nossa índole; é aí que encontramos e sorvemos
nossos sentimentos; é aí que vislumbramos nossos pensamentos e conhecemos-lhes
a fonte; é aí que pela primeira vez acariciamos nossas sensações; é aí que
somos apresentados e ligados à vontade e ao desejo; é aí que vemos já vívidas,
as lembranças e para elas acenamos. Todos dentro de nós. Profundamente. Reunindo-nos
em nós e celebrando nosso nascimento. Celebrando a nossa existência. É aí que sorvemos o sopro da vida. À Vida abraçamos
num abraço total. Também assim por ela somos abraçados. Em nós a vida se realiza,
e realiza sua eterna tarefa de viver. Generosa nos mostra sua viagem desde a
primeira célula que um dia pulsou. Generosa nos apresenta à memória o que um
dia viremos a ser, para que nos miremos e que sejamos exatamente o que um dia,
seremos. Nascemos aprendendo a nascer.
Aprendendo a nascer é modo de dizer. Pois a
nascer ninguém aprende. Simplesmente se nasce.
Mas
ali no compadrio do nascimento social, real, material, e na intimidade do
nascimento simbólico, onírico, espiritual, se aprende a aprender a nascer (mesmo
que a isso ninguém aprenda). Ali, se aprende que dentro de nós estão as forças
necessárias para conquistarmos o mundo depois que o mundo se acaba. Ali aprendemos que na profunda entrega a nós
próprios e às nossas mais íntimas verdades, mais nós mesmos a nós mesmos fazemos.
Mais em nós mesmos nos tornamos. Aprender a nascer é isso: é aprender a tecer a
fisionomia do vir a ser. É saber trazer para nós a vida. É saber levar à vida a
nossa existência. É saber inspirar e trazer para nossa alma individual e levar
ao espírito coletivo os ares das coisas novas que nós e a vida, juntos, devemos
viver.
Que nós e a vida devemos viver é maneira de
dizer... mas acho que vamos ter que falar disso depois, porque estou achando
que o tempo tá mudando... e que está chegando a minha hora de... nnnnaaaasssssccccceeeeeerrrrrrrr.......
Luiz Felipe Jardim
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Nascendo
sábado, 29 de janeiro de 2011
Memórias
Oiticica - Um Breve
Depoimento
Festival de Inverno da Universidade católica do Recife,julho de 1979.
Entre os convidados, Hélio Oiticica para realizar experiências com “parangolé” e fazer uma rápida retrospectiva de sua obra através de slides. Eu estava no festival realizando uma pequena exposição que... tinha um pé na arte conceitual e outro na arte construtiva, com o título “Manias de Narciso”, que muito impressionou o Oiticica. Conversamos muito sobre arte, a partir daí.
No seu trabalho com “parangolé”, queria um público da periferia, marginal, livre de influências culturais acadêmicas, já que via na marginalidade uma idéia de liberdade. Sem dúvida, era um inventor que mantinha certo domínio intelectual sobre seu próprio trabalho. Sabia o que queria e não queria fazer qualquer coisa. Uma noite circulamos pela periferia da cidade do Recife, na busca de uma escola de samba, Oiticica, Paulo Bruscky, Jomard Muniz de Brito e Almandrade. Uma aventura, papos e papos pela madrugada a dentro, de bar em bar nos arredores da cidade. A vida e a arte, os agitados anos de 1960, a mangueira, a tropicália, Londres, Nova York etc. A arte era, para ele, uma experiência quase cotidiana contra toda e qualquer forma de opressão: social, intelectual, estética e política. Na projeção de slides na Universidade Católica, as ilustrações dos papos da madrugada anterior, as imagens de uma obra que a arte jamais se livrará. Arte concreta, neo-concreta, penetráveis, ambientes coloridos, bólides, arte ambiental, tropicália etc.
No princípio era Mondrian, Malevith, depois Duchamp. Uma trajetória exemplar na arte brasileira. Uma tensão entre fazer arte e habitar o mundo. Foi assim, uma das últimas performances do Hélio. Quase oito meses depois, misturado com suas obras na solidão de um apartamento/ninho/penetrável, agonizou por três dias vítima de um derrame cerebral. Ficou a lembrança de uma brilhante e discreta presença num festival de inverno em pleno calor do nordeste brasileiro.
Almandrade
(artista plástico, poeta e arquiteto)
Suplemento Literário, Belo Horizonte, novembro de 1997
No seu trabalho com “parangolé”, queria um público da periferia, marginal, livre de influências culturais acadêmicas, já que via na marginalidade uma idéia de liberdade. Sem dúvida, era um inventor que mantinha certo domínio intelectual sobre seu próprio trabalho. Sabia o que queria e não queria fazer qualquer coisa. Uma noite circulamos pela periferia da cidade do Recife, na busca de uma escola de samba, Oiticica, Paulo Bruscky, Jomard Muniz de Brito e Almandrade. Uma aventura, papos e papos pela madrugada a dentro, de bar em bar nos arredores da cidade. A vida e a arte, os agitados anos de 1960, a mangueira, a tropicália, Londres, Nova York etc. A arte era, para ele, uma experiência quase cotidiana contra toda e qualquer forma de opressão: social, intelectual, estética e política. Na projeção de slides na Universidade Católica, as ilustrações dos papos da madrugada anterior, as imagens de uma obra que a arte jamais se livrará. Arte concreta, neo-concreta, penetráveis, ambientes coloridos, bólides, arte ambiental, tropicália etc.
No princípio era Mondrian, Malevith, depois Duchamp. Uma trajetória exemplar na arte brasileira. Uma tensão entre fazer arte e habitar o mundo. Foi assim, uma das últimas performances do Hélio. Quase oito meses depois, misturado com suas obras na solidão de um apartamento/ninho/penetrável, agonizou por três dias vítima de um derrame cerebral. Ficou a lembrança de uma brilhante e discreta presença num festival de inverno em pleno calor do nordeste brasileiro.
Almandrade
(artista plástico, poeta e arquiteto)
Suplemento Literário, Belo Horizonte, novembro de 1997
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Oiticica - Um Breve Depoimento
terça-feira, 4 de janeiro de 2011
*A CULTURA, A ARTE E A POLÍTICA
CULTURAL*
Nas chamadas políticas culturais emergenciais, na maioria das vezes, são discursos onde a cultura não passa de uma fantasia, uma miragem no fim do túnel. Como ela não é assunto prioritário, foi transferida para a iniciativa privada. Os investimentos visam retornos, fala-se em números, percentuais,nas leis de renúncia fiscal, sem uma idéia clara de cultura e seu papel na sociedade. Todo mundo se acha no direito de opinar, o patrocinador, o empresário, o político, o produtor cultural, o professor universitário, o curador etc. menos o artista e os que trabalham diretamente com as práticas artísticas, os operários da linguagem.
Depois da descoberta tardia que a cultura não se restringe às linguagens artísticas, as práticas acionadoras do pensamento crítico passaram a ser vistas com desconfiança, "coisas de elite", foram marginalizada e o entretenimento passou a ser o centro do financiamento público. A festa passou a ser o alvo dos investimentos públicos e privados em detrimento da cultura pensamento.
O que deveria ser uma política pública de cultura? Uma pergunta oportuna em momentos de transição política, quando as reivindicações reaparecem e as disputas por cargos públicos emergem. Antes de ser um problema de economia, de leis de incentivo, de política partidária, a cultura é um dispositivo da cidadania, um direito básico que deve fazer parte da formação do sujeito. "A cultura é coisa do homem que mora num certo lugar e num certo tempo" (Gerardo Mello Mourão). Portanto, antes de falar dos reduzidos recursos econômicos
destinados à área cultural, é estratégico se pensar em intervir culturalmente no modelo de desenvolvimento que afeta o meio ambiente, as
condições materiais, sociais e culturais de uma comunidade.
Uma política de cultura deve primeiramente levar em conta o quanto ela contribui para o imaginário das pessoas, tornando-as capazes de assumir decisões nas suas vidas. Que ela é uma forma de relacionamento com o mundo e seu cotidiano, antes de ser uma mercadoria e um objeto da política. Relegada à condição de entretenimento, passou a fazer parte das diversões, regida pela economia da cultura. E tudo que faz a economia crescer, que gera emprego e renda é ético nesta sociedade onde o emprego é cada vez mais
difícil. Mas a ética e lógica da cultura é outra. Se a diversão faz a economia crescer, atende a demanda de habitantes, e turistas carentes de
lazer, poucas vezes contribui para o aumento e transformação do repertório.
O homem vive entre a natureza e a cultura. E a cultura é uma construção do homem. Um trabalho. Resultado de um longo caminho. Cada cidade, estado ou região tem uma cultura que lhe é própria e múltipla. Uma política de cultura deve garantir a liberdade das diversas manifestações, sem qualquer interferência, e transferir as decisões para quem faz cultura, quem conhece as particularidades das linguagens, quem diretamente lida com o patrimônio material e imaterial que faz o acervo de uma cultura.
E quando se fala de artes, produtos diversificados e delicados e ao mesmo tempo conhecimentos específicos que fazem parte de uma cultura, o político, o produtor ou o atravessador deve ser substituído pelo técnico ou o especialista do metié. E uma instituição que trabalha com as artes tem como princípio estimular a liberdade de expressão e não servir com extensão de outras políticas ou de outras instituições.
*Almandrade *
*(artista plástico, poeta, arquiteto e presidente da Associação de Artistas Visuais da Bahia)*
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The Culture, Arts and Cultural Policy
What should be a public policy for culture? A timely question in times of political transition, reappear when claims and disputes emerge for
public office. Before becoming a matter of economics, legal incentives, party politics, culture is a device of citizenship, a basic right that should be part of subject. . "Culture is a thing of the man who lives in a certain place and at a certain time" (Gerardo Mello Mourão). So, before talking on reducing economic resources for the cultural area, is strategic thinking in cultural intervention in the development model that affects the environment, the material, social and cultural conditions of community.
A political culture must first take into account how much it contributes to people's imagination, making them capable of taking decisions in their lives. That it is a form of relationship with the world and their daily lives, rather than being a commodity and an
object of politics. Positioned as entertainment, has become part of the fun, governed by the economics of culture. And everything that
makes the economy grow, which generates jobs and income is ethical in this society where employment is increasingly difficult. But ethics
and logic of culture is something else. If the play makes the economy grow, meeting the demand of residents and tourists in need of recreation, rarely contributes to the growth and transformation of the repertoire.
Man lives between nature and culture. And culture is a building of man. A job. It’s a result of a long way. Each city, state or region has a culture of its own and multiple. A political culture must guarantee freedom of the various manifestations, without any interference, and transfer decisions for those who make culture, who knows the peculiarities of the languages, who deals directly with the
material and immaterial heritage that makes the body of a culture.
And when it comes to art, delicate and diversified products and at the same time, specific knowledge that are part of a culture, the politicians, the producer or the cultural merchant should be replaced by technical or a expertise of that area. And an institution that works with the arts is to stimulate the principle freedom of expression and not serve as extension of other policies or other
institutions.
Almandrade
ALMANDRADE is the owner of a style in which minimalism is the guide of his aesthetics, and he works on the poem like someone who lapidates a diamond. He is one of the creators of the Group of Language Studies in Bahia which edited the magazine Semiótica in 1974.
sábado, 1 de janeiro de 2011
Se existe uma palavra mágica é o desejo. Quando desejamos com toda força interior, emitimos uma energia misteriosa que nos compromete no empenho de realizar o que desejamos. Isso pode ter conseqüências concretas para as outras pessoas e no mundo. Nestes dias, há quem tenha desejado "Feliz ano novo!" como mera formalidade social. Entretanto, a maioria das pessoas, de fato, anseia que este ano de 2011 seja um tempo mais feliz e de paz para si mesmo/a, para os entes queridos e para todo mundo. Por isso, quem, de coração, almeja os melhores votos de ano novo, precisa saber como transformar o seu desejo em caminho positivo para um futuro melhor.
As culturas e religiões antigas crêem na força da palavra. Em muitas religiões indígenas, as palavras curam ou, ao contrário, podem matar. Na Bíblia, vários salmos pedem a Deus que nos proteja dos "i pô ´allê ´awen", isto é, as pessoas que, com sua palavra, provocam males como doenças, tragédias ecológicas e todo tipo de infelicidade. Esta cultura dos amaldiçoadores vinha de Sumer onde existiam rituais de Shurpu, maldições do tipo que em nossa cultura popular se chamaria "rogar praga". No Novo Testamento, a 1ª carta de Pedro insiste que "nós temos a vocação da bênção, isto é, somos chamados a bendizer, ou seja, invocar o bem sobre as pessoas e sobre o universo (1 Pd 3, 9).
Para as culturas antigas, a palavra é eficaz quando nasce no mais profundo do coração e é precedida pela prática de vida. O Mahatma Gandhi ensinava: "Comece por você mesmo a mudança que deseja para o mundo". O Evangelho diz que a palavra de Deus se realizou em João Batista no deserto (Lc 3). Isso significa que, primeiramente João viveu a palavra e só depois a proclamou. Quando vivemos o amor, a generosidade, a solidariedade e a partilha de vida, então, o nosso desejo de que o mundo caminhe para isso se torna eficaz. Evidentemente que não temos força para mudar organizações sociais e sistemas complexos e baseados em leis estruturais. Não podemos pensar que somente pelo fato de desejar, conseguiremos transformar o mundo. No entanto, podemos contribuir para que se criem as condições necessárias para transformar estas leis e sistemas.
Você quer, de fato, que este ano seja um tempo de profunda renovação da sua vida? Deseja que isso repercuta bem para as pessoas ao seu redor e para todo o universo? Então, refaça neste início de ano novo o compromisso de, a cada dia, consagrar um tempo, por mínimo que seja, de gratuidade e interioridade para renovar um verdadeiro e profundo diálogo consigo mesmo/a. Ao mesmo tempo, comprometa-se em ser, cada vez mais, uma pessoa de diálogo com os outros, inclusive com as pessoas que pensam e agem a partir de valores que você não aprova. O diálogo mais fecundo é justamente com os que pensam e atuam diferentemente de nós. Além disso, procure de todos os modos intensificar a comunhão solidária com a terra, a água e todos os seres vivos do planeta. Faça isso e a bênção deste ano novo se realizará em você e, a partir de você, no mundo. Você constatará, então, como se tornarão verdadeiras e fecundas em sua vida, assim como para os que convivem com você, as palavras da antiga bênção irlandesa: "O vento sopre leve em teus ombros. Que o sol brilhe cálido sobre tua face, as chuvas caiam serenas onde moras. E até que, de novo, eu te veja, que Deus te guarde na palma da sua mão".
[Autor de 37 livros, entre os quais O Amor fecunda o Universo (Ecologia e Espiritualidade) com co-autoria de Frei Betto. Ed Agir, 2009].
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
O misterioso poder da palavra
Por Deonísio da Silva
Algumas palavras só aparecem nas festas de fim de ano. "Próspero" é o adjetivo mais usado para qualificar o ano que se deseja para o próximo no próximo ano. "Feliz" é disparado o adjetivo preferido para o Natal. Às vezes, saem também "rico", "venturoso", "santo" e poucos mais. Os hegemônicos são "feliz" para "Natal" e "próspero "para o ano vindouro. Aliás, vindouro é variante de próximo.
Ah, as palavras! O menino estava a ponto de ser atropelado por uma bicicleta. Um padre anteviu o desastre e gritou: "Cuidado!" O ciclista assustou-se e caiu por terra. O padre, sem parar de caminhar, disse ao menino: "Já viste o que é o poder da palavra?"
O guri tinha doze anos e se chamava Gabriel García Márquez. Dali a 42 anos ganharia o Prêmio Nobel de Literatura. Muitos anos depois de ter recebido o galardão mundial, confessaria num discurso que naquele remoto dia de sua adolescência soubera o poder das palavras e lembrou que os antigos maias adoravam um deus das palavras, tal a reverência pelo verbo.
"Nunca como hoje foi tão grande esse poder", acrescentou na conferência que pronunciou em Zacatecas, no México, em 7 de abril de 1997. E profetizou que a humanidade entraria no terceiro milênio sob o poder das palavras. (Gabriel García Márquez lançou em 2010 No vengo a decir un discurso, pela Random House Mondadori, em castelhano para Espanha e América Latina pela Sudamaericana, 151 páginas; é o mais recente livro do Prêmio Nobel – ver aqui.)
Exemplos de palavras sem imagens
Invertendo o provérbio "uma fotografia vale por mil palavras", é uma palavra vale por mil fotografias. Fotografias e imagens, longe de fazer com que as palavras percam a força ou se façam desnecessárias, estão reforçando o verbo.
Há vários modos de comprovar a tese de que as palavras reinam absolutas hoje no mundo, acompanhadas ou não de imagens. Basta lembrar que, se é certo que algumas imagens, mas não todas, dispensam legenda, as palavras podem dizer tudo sem imagens, como disse Pero Vaz de Caminha, como disse Cristóvão Colombo, como disseram tantos viajantes, letrados ou padres dos primeiros séculos do Brasil e da América.
Podemos dar exemplos mais recentes e de mais fácil comprovação. O motorista engarrafado fala ao celular. A jovem, correndo e suando à beira da praia ou na rua, está ouvindo suas canções preferidas nos fones de ouvido. Sequer presta atenção à paisagem ou a você. Ou a ela mesma. Televisores, nas residências ou em locais públicos, proclamam em alto volume o que as imagens estão mostrando. Os políticos explicam o quarto segredo de Fátima em todos os canais. Os rádios, em casa, nos automóveis ou em locais públicos, preveem o tempo, o horóscopo e nos enchem de notícias, muitas das quais absolutamente desnecessárias, mas que não puderam dispensar as palavras para chegar a todos os ouvidos, alguns dos quais sem o poder de evitá-las. Diferentemente dos silenciosos animais do presépio, esses berram, mugem e zurram sem parar.
Até Deus precisou das criaturas
O Natal é, por excelência, o dia da palavra. Dentre aqueles que o narraram, destaca-se João: "No princípio já existia a Palavra. Tudo existiu por meio dela e sem ela não existia nada do que hoje existe".
Foi assim desde o começo. "Exista a luz", disse o Criador. "E a luz foi feita." É verdade que na tradução do hebraico para o latim, São Jerônimo, na célebre Vulgata, traduziu o verbo "existir"por facere (fazer), e não esse (ser, existir). Tornou-se clássico o versículo Fiat lux (faça-se a luz). Et facta est lux ( e a luz foi feita). Inclusive, este fiat lux tornou-se marca de fósforos no Brasil. Também as iniciais da Fábrica Italiana de Automóveis de Turim resultaram num outro Fiat.
Tudo o que existe, existiu primeiro na imaginação de algumas pessoas, depois em palavras com que designaram as realidades que criaram. Até as pinturas têm nomes. Se não soubessem a arte da palavra, nada teria sido criado, pois o criador precisa do outro. Até Deus precisou das criaturas, ao menos para admirá-lo, para ir até onde possam e, enfim, deter-se diante dos mistérios, dos quais o Natal é um dos maiores.
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
As mulheres e os homens de Mário Prata
Por Gabriel Perissé
A idéia é muito boa. Quase genial. Na verdade, uma idéia simples, óbvia, mas extremamente produtiva. Mario Prata olhou os nomes de sua agenda telefônica e teve uma visão. Cada nome lhe renderia uma história, uma anedota, um causo, um chiste que, somados, formariam um livro. Não deu outra.
De A a Z, mais de duzentos nomes. Nomes de gente famosa ou de ilustres desconhecidos. No fundo, Mario Prata fez uma autobiografia contada pelo viés da vida alheia. E a vida alheia é parte substancial da nossa vida! O autor grampeou sua agenda, e ouviu cada uma...
O livro, falemos sem medo, resvala o tempo todo para as fofocas (e quem não gosta de ouvir uma, de vez em quando?), cujos protagonistas pertencem à vida artística brasileira. Estão lá Dias Gomes, Bibi Ferreira, Caetano Veloso, Marília Gabriela, Hebe Camargo, Fernando Sabino, Chico Buarque, Lima Duarte, João Ubaldo Ribeiro, Grande Otelo, José Wilker, Irene Ravache, Ziraldo, Vinícius de Moraes, nomes que, talvez, alguém sonhasse ter na sua agenda também.
Mas são fofocas demais, e algumas de péssimo gosto. Quem saiu com quem, quem traiu quem, quem telefonou para quem, quem pegou carona com quem, quem passou vexame, enfim, conversas que não acabam nunca, num boteco do Leblon, sobre fiascos alheios e próprios, sobre proezas próprias e alheias, sobre mil dólares emprestados, sobre um trocadilho que alguém improvisou numa viagem, sobre, até mesmo, uma aeromoça que transa por telefone com o autor. Puxa, que interessante!
O estilo de Mario Prata está todo aqui: astúcia verbal, cinismo, leviandade, ironia cruel, histórias curiosas, frases certeiras, graça, senso de humor implacável, algo de Nelson Rodrigues, algo de Millôr Fernandes —um belo desperdício de talento.
Mas o importante é que o livro entrou (ou já estava lá desde o começo?) na lista dos mais vendidos. Os editores estão contentes. Os livreiros estão contentes. As pessoas mencionadas no livro devem estar contentes. Até os leitores parecem contentes. O autor, bem, o autor está contente. Mas eu me pergunto se a cultura brasileira está contente e que tipo de leitor eu saio depois dessa leitura.
Posso falar com toda a franqueza? Penso que foi um acerto comercial mas um erro editorial publicar este livro.
Se Mario é de prata, melhor seria o silêncio, que é de ouro.
[Minhas mulheres e meus homens, Editora Objetiva, 1999, 252 páginas.]
Retornar...
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
REINAÇÕES E PIRAÇÕES
®Lílian
Maial
Não poderia deixar de
escrever alguma nota acerca da denúncia da Secretaria de Promoção de Igualdade
Racial sobre o livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, um dos
maiores autores de literatura infantil brasileira, de que teria um cunho
racista.
Precisamos avaliar com
muito cuidado esse tipo de coisa, aqui no Brasil, para não se criar um clima de
rivalidade e instigar atitudes mais apaixonadas.
O Conselho Nacional de
Educação (CNE) deu parecer favorável à denúncia e, segundo a Secretaria de
Alfabetização e Diversidade do MEC, a obra só deve ser usada "quando o professor
tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil".
Ora, será que o MEC não confia nos professores que
credita?
O livro já foi
distribuído pelo próprio MEC a colégios de ensino fundamental pelo Programa
Nacional de Biblioteca na Escola (PNBE)!
Publicado em 1933, o
livro narra as aventuras da turma do Sítio do Pica-pau Amarelo em busca
de uma onça-pintada. Conforme o parecer do CNE, o racismo estaria na abordagem
da personagem “Tia Nastácia”. Um dos trechos que sustenta a argumentação do CNE
diz: "Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem
uma macaca de carvão". Outro diz: Não é a toa que macacos se parecem tanto com
os homens. Só “dizem bobagens.”
Para a autora do parecer
- Nilma Lino Gomes - professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
o livro deve ser banido das escolas ou só poderá ser adotado caso a obra seja
acompanhada de nota sobre os "estudos atuais e críticos que discutam a presença
de estereótipos raciais na literatura". Muito
barulho...
Naturalmente, qualquer
pessoa afro descendente pode se sentir magoada, se apontada como macaco, carvão,
urubu ou qualquer menção pejorativa de sua cor. Contudo, há que se entender que
o livro foi escrito num contexto completamente diferente do de agora, e que tal
situação fica clara na leitura contextualizada do
livro.
Se fôssemos censurar a
leitura de todos os livros que ferissem minorias, não se poderia conhecer a
História! Livros sobre judeus, muçulmanos, índios, ateus, evangélicos,
orientais, todos seriam banidos. Não se poderia estudar a Alemanha nazista, por
exemplo, em sala de aula!
Entendo que o racismo de
qualquer espécie não tem cabimento, é um absurdo, mas precisamos tomar cuidado
para não levarmos a coisa a extremos perigosos, a atitudes revanchistas e
separatistas, que só poriam a perder todos os avanços sociais e legislativos que
a população, como um todo, vem alcançando, a duras penas, ao longo dos anos.
O retorno de qualquer
tipo de censura fere a democracia e atropela obras atemporais, como esta. Seria
um retrocesso! E pior desigualdade é ainda termos milhares de crianças sem
acesso a obras literárias do nível das de Monteiro Lobato.
Censurar Monteiro Lobato
é como censurar nossa cultura, é como censurar Macunaíma, Saci Pererê e tantos
outros personagens riquíssimos do nosso rincão.
Enquanto esses
representantes pensam em censurar Monteiro Lobato e todo o seu mundo de fantasia
genuinamente brasileira, vemos nossos filhos serem massacrados por uma mídia
norte-americana recheada de violência, pornografia, palavras de baixo calão,
transformando crianças brasileiras em escravos estúpidos da telinha, tenham a
cor ou o credo que tiverem.
Não podemos permitir que
afastem nossos filhos cada vez mais da inocência, da decência, do conhecimento,
da literatura e do ensino de qualidade. Nossas escolas, ao contrário, deveriam
introduzir toda a coleção do Lobato no ensino fundamental, para que nossas
crianças pudessem brincar no Reino das Águas Claras e se sentirem
acalentadas pelos conselhos de Dona Benta e as reprimendas de Tia
Nastácia.
Nossos Pedrinhos
e Narizinhos merecem e agradecem.
sexta-feira, 5 de novembro de 2010
Artigos e Reflexões de Helena Sut- Das dores de ser Mulher...
Exilado das fases férteis, o corpo reverbera a perturbação. Não há suturas para os hímens rompidos pelos verbos saciados de angústias e anseios. As peles da razão encobrem a cicatriz, talvez uma máscara, um texto decorado, um luto... Ecos de vozes tardias. Os sintomas se sucedem nas paredes uterinas: contrações, histeromania, frigidez... Alguidar de princípios escondido sob a mortalha de uma psicopatia.
Obsessão, culpa, alucinação, loucura – substantivos femininos que não se encerram no som e maculam de significados as projeções do corpo obscuro e das transparentes manifestações da alma. Palavra derramada na conjunção de segredos e confissões do íntimo feminino.
Histeria - diagnóstico da vida.
Teu nome era um verbo irregular, defectivo, uma ação de primeira pessoa, uma reflexão quase obscena. Singular era a espiral de expectativas. Plural era o emaranhado de nós na garganta, nos dedos, no pensamento... Ser em ti era semear o gerúndio, cultivar o tempo num horizonte transitivo perdido de objetos. Permanecer em ti era buscar nas interrogações o motivo das reticências. Conjugar-te em mim era aos poucos perder o sentido da oração, retomar a leitura e subordinar novos significados as metáforas indecifráveis de algumas memórias. Mas teu nome, gerúndio de uma ação empobrecida com o uso, foi preterido nas entrelinhas de um longo parágrafo e permaneceu, imperfeito, como cicatriz de uma lembrança imprecisa.
Devolva-me as memórias, suturas de peles, que não pude cicatrizar na ausência. Deixe-me fantasiar os descuidos, recompor os diálogos, os sonhos, os risos... Não fale! Antes sussurre os gemidos, as declarações, as palavras que se equilibraram nas carícias, os silêncios que se abandonaram nas entranhas... Leve as vivências amargas e, quando minhas pálpebras sonolentas se encontrarem, livre-me de mim para que eu possa acordar desatada de nós...
Quando fui aprisionada no jardim do olhar, pressenti que caminhava os passos cruciantes da paixão. A dor do gesto presente na incerta despedida, os sentidos suspensos entre as alturas do louvor e os abismos da ingratidão, o espírito em oração buscando a comutação das penas... Mísero coração! Em passos lentos, percebi o corpo tombar exaurido e se projetar no chão como uma lembrança angustiante... Quando tentei velar o morto, compreendi que a carne estava presa na minha alma em cruz e atravessei a noite insone para me desprender do desejo em agonia.
Poderia falar que havia facas, pois havia raiva e vontade de mutilar as razões... Mas, depois de me refletir silêncio no espelho do dia indiferente, percebi que só havia um caco num poço de olhos ressecados. Um brilho afiado no cativeiro de sombras inofensivas.
Repentinos... O tremor no corpo e a desordem das emoções. As mãos oscilam com a intensidade dos movimentos. Desequilibram as palavras e rasgam silêncios entre as gretas do olhar inquieto. Contração. Busco a origem do êxtase nos escombros dos alicerces antigos, mas, entre abismos, só pressinto o anseio de sentir a pele que ainda não toquei e me desprender da margem dos medos. O desejo se propaga como um abalo juvenil e confunde o plano da identidade com a impressão do outro. Dilação.
Cerzimos nossos silêncios numa colcha farpada e deslizamos os corpos até descobrir as chagas das clandestinas palavras.
Chegou como um vento que arranca a alma e deixa um rastro vazio no corpo. Ausência de palavras. Privação que abafa os gritos e aquece a dor.
Quero resgatar o riso que sangrei nas farpas de tuas palavras e cicatrizá-lo na perspectiva do tempo.
O pensamento roça a frágil membrana do medo e deixa à mostra o corpo escoriado de lembranças... Em carne viva, sem peles para cicatrizar as racionais distâncias, o sentimento verte e alaga os dias com a sensação de incompletude.
De repente, sangrei... Lancei ao mundo uma gestação incompleta, um corpo mutilado, quase assustador, mas já tinha coração...
Acordei assustada numa noite de sombras. O sonho permanecia no corpo numa estranha sensação de vazio e dor. Luz. No espelho, não reconheci traço algum que denunciasse o meu assombro. Os olhos estavam desfolhados de madrugadas...
Voltei a dormir. De repente, sorria... Um sorriso cruel, mais frio do que uma lágrima de inverno. O olhar permanecia suspenso como um galho seco, entregue ao sono, aguardando a primavera...
Um rio obscuro há em mim. Nos ciclos áridos, transborda e alaga as margens. Deixa as pernas trêmulas, os braços oscilantes, o olhar nublado desbotando a malícia escondida no horizonte. Em outros ciclos, o córrego voraz suga o que há em mim e me obriga a correr em direção a foz para não morrer da sede de meus desejos...
Hoje escrevo como quem se encontra pretérito, quase perfeito, passado na noite insone, perdido nos verbos que deixou de conjugar no imperativo das horas.
A vida se desdobrava nos inúmeros afazeres. Galgou posições profissionais e pessoais. Cresceu. Guardadas algumas culpas e muitas realizações, restava um sentimento de incompletude. Ana Maria acreditava na existência. Era avessa aos conceitos preconcebidos de almas gêmeas e amores incondicionais, mas muitas vezes se flagrava planejando um encontro prazeroso e a construção de uma relação estável. Projeto tantas vezes adiado e alterado.
Foi num coquetel corriqueiro. Ana Maria estava entre amigos quando Rodolfo se aproximou. As apresentações foram formais, porém o clima de magia propiciou uma rápida cumplicidade. Em poucos momentos, os dois conversavam com intimidade, descortinaram seus projetos pessoais e compartilharam as travessuras dos frutos das relações anteriores. A noite encerrou com a certeza de um novo encontro, um olhar malicioso e a troca de telefones.
Ana Maria já estava acostumada com os ensaios de encontros, mas foi surpreendida com a ligação de Rodolfo no dia seguinte. Sentiu a insegurança própria diante do desconhecido. Aceitou o convite com algumas reticências. Um jantar num restaurante aconchegante, vinho e palavras esculpidas no que de mais raro existe na literatura. O cenário perfeito para representação das fantasias, as palavras perfeitas para a construção de um roteiro romântico, os personagens escolhidos numa multidão de desencontrados...
Algumas noites foram suficientes para as juras de amor eterno. O projeto amoroso ganhava força nas palavras convincentes de Rodolfo. Casamento, filhos, casa no campo, viagens paradisíacas... Ana Maria acreditou no verdadeiro encontro e se desfez de algumas defesas. Apresentou os filhos, mostrou suas fragilidades, assumiu a relação para a família e amigos, afirmou a convicção do enlace na precipitada paixão.
Rodolfo começou a conviver na casa de Ana Maria e a participar dos almoços de família aos domingos. Todos foram envolvidos por seu carisma e sensibilidade. Era certo “Ana Maria havia encontrado o companheiro perfeito.”
O conto de fadas, abruptamente, amadureceu numa narrativa com capítulos imprevisíveis: Rodolfo começou a interferir na relação de Ana Maria com os filhos; os pais de Ana Maria se afastaram assustados com alguns rompantes que presenciaram; Ana Maria deixou de freqüentar os lugares de costume... Sentia receio da instabilidade do companheiro, mas tentava se convencer da sinceridade dos seus sentimentos. Necessitava crer que o compromisso amoroso era possível...
As juras de amor duelavam com o fel das palavras. As tantas acusações traçaram um perfil de mulher doente com emoções exasperadas. Ana Maria não conseguia se reconhecer nos sentimentos retalhados e se reencontrar com o homem que conhecera.
Sentia pena da carência de Rodolfo, sentia medo de sua agressividade... Vivia dividida entre as desculpas para os amigos e familiares e a necessidade de acreditar no resgate do amante dos primeiros momentos. Os conflitos se tornaram constantes. Desencontros e desconfianças. Frustrações eram escondidas nos ardentes encontros sexuais. Rodolfo e Ana Maria adoeciam com a falta de respeito e carinho, mas insistiam em não perceber a ausência de amor.
O projeto amoroso foi emoldurado nos grandes silêncios. Não havia espaço para verdades individuais, as palavras foram escondidas nos olhares dispersos... As conversas cotidianas e a grande vergonha não declarada dos outros, aos poucos, foram incorporadas nos gestos da mulher fragilizada. Seu desempenho como profissional começou a ser questionado. Como uma administradora não conseguia gerenciar sua vida pessoal?
O sorriso de Ana Maria apagou e ela se encarcerou, refém de suas carências e medos.
Ela tentou se afastar, buscar o que pressentia ter perdido. Viajou, mudou o caminho rotineiro, não atendia o telefone, mas Rodolfo sempre aparecia depois de alguns períodos de distanciamento. Surgia abatido e com promessas de mudanças e discursos renovados.
Um dia, como se alertada de um diagnóstico de uma grave doença, Ana Maria percebeu que sua sanidade estava por um fio e que restava apenas a possibilidade de abortar o projeto amoroso e matar as esperanças com a cicatriz de uma desilusão.
Refugiou-se em seu mundo interior e tentou se reencontrar. Já estava irremediavelmente mudada, mas ainda havia possibilidade de recomeço, resgatando a auto-estima.
Alguns dias de silêncio. Ana Maria retornou aos trajetos cotidianos e viu de longe Rodolfo com o olhar manso e os gestos sedutores conversando com uma conhecida. Distante, assistiu à performance de Rodolfo com indiferença. Não sentia nada, talvez um pouco de pena de si própria. O mesmo olhar prometia as mesmas juras de amor. O cenário se abriu em uma nova perspectiva: a representação do projeto amoroso continuava com uma nova personagem.
Os passos se tornaram leves e sombreados com um sorriso esquecido. Não poderia apagar a história, os sonhos e as cicatrizes gravadas em sua alma, mas sentiu indiferença pelo passado. Compreendeu que algumas vezes viveu palavras que realmente não sentiu, jurou a eternidade quando só tinha o presente, também ludibriou e magoou os outros.
A autoria do estelionato emocional não tem um perfil definido. A prática do delito independe de sexo, idade ou nível social. Não há inocentes. São tantas as armadilhas e tantas as desculpas... O artifício mais poderoso é a esperança depositada no outro sem garantias do resgate do projeto pessoal íntegro.
Ana Maria...
ESTRICNINA
Abro o jornal de quinta-feira (15/03/2007) e passo os olhos pelas manchetes. O título “Mulher morre após fazer pacto de morte com o namorado” me chama atenção e inconscientemente traço um paralelo com a obra do dramaturgo William Shakespeare: Romeu e Julieta. Imagino dois jovens descobrindo o amor, lutando contra as intempéries cotidianas... O romantismo à beira do desespero e a morte como o desfecho da trama. Percorro o artigo e, logo nas primeiras informações, desfaço as analogias poéticas e ergo as cruéis realidades da modernidade.Balzaquiana, realizada profissionalmente e independente encontra o amor num site de relacionamento e durante dois anos mantém um vínculo afetivo cercado de segredos e restrições. O homem apresenta-se virtualmente com todas as características almejadas por mulheres com o perfil da vítima. Logo no primeiro encontro, ele confidencia que é membro de um serviço secreto estrangeiro e que, como tem sua vida rastreada e corre perigo, é melhor que ela não saiba muito dos seus movimentos.
Com os meses, a relação se estreita. Ela está mais disponível e vulnerável enquanto as máscaras do amante caem. Ele é perseguido pelos medíocres, uma vítima da inveja de uma sociedade recalcada... Já com algum desencanto e muita persistência, ela o reconhece como um homem desempregado, refém de um matrimônio infeliz, e com dois filhos, mas com algumas alegorias consegue prosseguir na relação sem conhecer as verdadeiras intenções do namorado.
Uma pessoa apaixonada é sempre traiçoeira. É a primeira a sabotar os alertas das pessoas próximas e os sinais vermelhos que o instinto de preservação acende diante da constatação das inverdades do ser idealizado. É capaz de empreender uma luta contra as injustiças do mundo que mantém o amante desacreditado e infeliz; compreender as ausências, as notícias inacabadas e as faltas nos compromissos agendados, e ainda apoiar financeiramente o companheiro na recuperação de sua posição social tão propagada.
Inúmeras são as justificativas: “Ele só mentiu porque estava envergonhado de sua situação atual.”; “Dormem em quartos separados. Só estão casados por causa dos filhos.”; “Era urgente. Se eu não emprestasse, quem o faria?”. “Ele precisava do carro, só financiei em meu nome. Ele vai pagar as prestações...”; “Disse que é apenas uma questão de tempo.”; “Ele não suporta mais as cobranças da mulher”; “Coitado. Está tão infeliz!”...
Após a celebração do pacto, a morte da mulher e a prisão do reincidente golpista da internet, será difícil reconstituir as emoções e expectativas que culminaram no ato desesperado, contudo, existem situações em que não há como prosperar a alegação de inocência, mesmo considerando a tendência na personalidade de algumas vítimas de incorporarem os papéis de ingênuas. Pessoas maduras que, apesar de já terem suportado rupturas e desilusões afetivas, rendem-se às primeiras referências postadas num site de relacionamento e insistem em relações com intimidades construídas de acordo com as fragmentadas informações colhidas e com a íntima e forte contra-argumentação para as incoerências percebidas.
A morte da mulher é uma página que será apagada dos cenários virtuais e se repetirá em novos (des) encontros com perversa criatividade. Um enredo triste que se sustenta na carência das pessoas que, decepcionadas com os encontros reais, preferem mergulhar num mar de ilusões oxigenadas por falsos eus, eles, nós... Mais do que uma notícia, o caso (des) amoroso e policial é um tema para reflexão.
Nossa Homenagem a Menina Eloá
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