sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Artigos e Reflexões de Helena Sut- Das dores de ser Mulher...

HISTERIA

Dizem que a origem de histeria é o útero. Órgão feminino que gesta gritos e se retalha em emoções e ansiedades... Manifesta-se como um punho retraído, um soco doloso, um exagero, uma simulação, e depois sangra silêncios nas costuras dos tantos ciclos.


Exilado das fases férteis, o corpo reverbera a perturbação. Não há suturas para os hímens rompidos pelos verbos saciados de angústias e anseios. As peles da razão encobrem a cicatriz, talvez uma máscara, um texto decorado, um luto... Ecos de vozes tardias. Os sintomas se sucedem nas paredes uterinas: contrações, histeromania, frigidez... Alguidar de princípios escondido sob a mortalha de uma psicopatia.


Obsessão, culpa, alucinação, loucura – substantivos femininos que não se encerram no som e maculam de significados as projeções do corpo obscuro e das transparentes manifestações da alma. Palavra derramada na conjunção de segredos e confissões do íntimo feminino.


Histeria - diagnóstico da vida.


PASSADO IMPERFEITO

Teu nome era um verbo irregular, defectivo, uma ação de primeira pessoa, uma reflexão quase obscena. Singular era a espiral de expectativas. Plural era o emaranhado de nós na garganta, nos dedos, no pensamento... Ser em ti era semear o gerúndio, cultivar o tempo num horizonte transitivo perdido de objetos. Permanecer em ti era buscar nas interrogações o motivo das reticências. Conjugar-te em mim era aos poucos perder o sentido da oração, retomar a leitura e subordinar novos significados as metáforas indecifráveis de algumas memórias. Mas teu nome, gerúndio de uma ação empobrecida com o uso, foi preterido nas entrelinhas de um longo parágrafo e permaneceu, imperfeito, como cicatriz de uma lembrança imprecisa.
LIVRE-ME DE NÓS

Devolva-me as memórias, suturas de peles, que não pude cicatrizar na ausência. Deixe-me fantasiar os descuidos, recompor os diálogos, os sonhos, os risos... Não fale! Antes sussurre os gemidos, as declarações, as palavras que se equilibraram nas carícias, os silêncios que se abandonaram nas entranhas... Leve as vivências amargas e, quando minhas pálpebras sonolentas se encontrarem, livre-me de mim para que eu possa acordar desatada de nós...


AGONIA DO DESEJO


Quando fui aprisionada no jardim do olhar, pressenti que caminhava os passos cruciantes da paixão. A dor do gesto presente na incerta despedida, os sentidos suspensos entre as alturas do louvor e os abismos da ingratidão, o espírito em oração buscando a comutação das penas... Mísero coração! Em passos lentos, percebi o corpo tombar exaurido e se projetar no chão como uma lembrança angustiante... Quando tentei velar o morto, compreendi que a carne estava presa na minha alma em cruz e atravessei a noite insone para me desprender do desejo em agonia.


OLHAR - INSTRUMENTO DE CORTE

Poderia falar que havia facas, pois havia raiva e vontade de mutilar as razões... Mas, depois de me refletir silêncio no espelho do dia indiferente, percebi que só havia um caco num poço de olhos ressecados. Um brilho afiado no cativeiro de sombras inofensivas.


NA PRÓPRIA CARNE


Repentinos... O tremor no corpo e a desordem das emoções. As mãos oscilam com a intensidade dos movimentos. Desequilibram as palavras e rasgam silêncios entre as gretas do olhar inquieto. Contração. Busco a origem do êxtase nos escombros dos alicerces antigos, mas, entre abismos, só pressinto o anseio de sentir a pele que ainda não toquei e me desprender da margem dos medos. O desejo se propaga como um abalo juvenil e confunde o plano da identidade com a impressão do outro. Dilação.


SILÊNCIO

Cerzimos nossos silêncios numa colcha farpada e deslizamos os corpos até descobrir as chagas das clandestinas palavras.


RAIVA

Chegou como um vento que arranca a alma e deixa um rastro vazio no corpo. Ausência de palavras. Privação que abafa os gritos e aquece a dor.


ARTE FINAL

Quero resgatar o riso que sangrei nas farpas de tuas palavras e cicatrizá-lo na perspectiva do tempo.


EM CARNE VIVA

O pensamento roça a frágil membrana do medo e deixa à mostra o corpo escoriado de lembranças... Em carne viva, sem peles para cicatrizar as racionais distâncias, o sentimento verte e alaga os dias com a sensação de incompletude.


DECEPÇÃO

De repente, sangrei... Lancei ao mundo uma gestação incompleta, um corpo mutilado, quase assustador, mas já tinha coração...
Acordei assustada numa noite de sombras. O sonho permanecia no corpo numa estranha sensação de vazio e dor. Luz. No espelho, não reconheci traço algum que denunciasse o meu assombro. Os olhos estavam desfolhados de madrugadas...
Voltei a dormir. De repente, sorria... Um sorriso cruel, mais frio do que uma lágrima de inverno. O olhar permanecia suspenso como um galho seco,  entregue ao sono, aguardando a primavera...


CICLOS DO DESEJO

Um rio obscuro há em mim. Nos ciclos áridos, transborda e alaga as margens. Deixa as pernas trêmulas, os braços oscilantes, o olhar nublado desbotando a malícia escondida no horizonte. Em outros ciclos, o córrego voraz suga o que há em mim e me obriga a correr em direção a foz para não morrer da sede de meus desejos...


CONJUGAÇÃO

Hoje escrevo como quem se encontra pretérito, quase perfeito, passado na noite insone, perdido nos verbos que deixou de conjugar no imperativo das horas.




ESTELIONATO EMOCIONAL



Ana Maria, divorciada, mãe de dois filhos, gerente de planejamento estratégico de uma empresa, tinha certeza de estar no controle de sua vida e não poderia prever que um dia seria refém das próprias circunstâncias.
A vida se desdobrava nos inúmeros afazeres. Galgou posições profissionais e pessoais. Cresceu. Guardadas algumas culpas e muitas realizações, restava um sentimento de incompletude. Ana Maria acreditava na existência. Era avessa aos conceitos preconcebidos de almas gêmeas e amores incondicionais, mas muitas vezes se flagrava planejando um encontro prazeroso e a construção de uma relação estável. Projeto tantas vezes adiado e alterado.
Foi num coquetel corriqueiro. Ana Maria estava entre amigos quando Rodolfo se aproximou. As apresentações foram formais, porém o clima de magia propiciou uma rápida cumplicidade. Em poucos momentos, os dois conversavam com intimidade, descortinaram seus projetos pessoais e compartilharam as travessuras dos frutos das relações anteriores. A noite encerrou com a certeza de um novo encontro, um olhar malicioso e a troca de telefones.
Ana Maria já estava acostumada com os ensaios de encontros, mas foi surpreendida com a ligação de Rodolfo no dia seguinte. Sentiu a insegurança própria diante do desconhecido. Aceitou o convite com algumas reticências. Um jantar num restaurante aconchegante, vinho e palavras esculpidas no que de mais raro existe na literatura. O cenário perfeito para representação das fantasias, as palavras perfeitas para a construção de um roteiro romântico, os personagens escolhidos numa multidão de desencontrados...
Algumas noites foram suficientes para as juras de amor eterno.  O projeto amoroso ganhava força nas palavras convincentes de Rodolfo. Casamento, filhos, casa no campo, viagens paradisíacas... Ana Maria acreditou no verdadeiro encontro e se desfez de algumas defesas. Apresentou os filhos, mostrou suas fragilidades, assumiu a relação para a família e amigos, afirmou a convicção do enlace na precipitada paixão.
Rodolfo começou a conviver na casa de Ana Maria e a participar dos almoços de família aos domingos. Todos foram envolvidos por seu carisma e sensibilidade. Era certo “Ana Maria havia encontrado o companheiro perfeito.”
O conto de fadas, abruptamente, amadureceu numa narrativa com capítulos imprevisíveis: Rodolfo começou a interferir na relação de Ana Maria com os filhos; os pais de Ana Maria se afastaram assustados com alguns rompantes que presenciaram; Ana Maria deixou de freqüentar os lugares de costume... Sentia receio da instabilidade do companheiro, mas tentava se convencer da sinceridade dos seus sentimentos.  Necessitava crer que o compromisso amoroso era possível...
As juras de amor duelavam com o fel das palavras. As tantas acusações traçaram um perfil de mulher doente com emoções exasperadas. Ana Maria não conseguia se reconhecer nos sentimentos retalhados e se reencontrar com o homem que conhecera.
Sentia pena da carência de Rodolfo, sentia medo de sua agressividade... Vivia dividida entre as desculpas para os amigos e familiares e a necessidade de acreditar no resgate do amante dos primeiros momentos. Os conflitos se tornaram constantes. Desencontros e desconfianças. Frustrações eram escondidas nos ardentes encontros sexuais. Rodolfo e Ana Maria adoeciam com a falta de respeito e carinho, mas insistiam em não perceber a ausência de amor.
O projeto amoroso foi emoldurado nos grandes silêncios. Não havia espaço para verdades individuais, as palavras foram escondidas nos olhares dispersos... As conversas cotidianas e a grande vergonha não declarada dos outros, aos poucos, foram incorporadas nos gestos da mulher fragilizada. Seu desempenho como profissional começou a ser questionado. Como uma administradora não conseguia gerenciar sua vida pessoal?
O sorriso de Ana Maria apagou e ela se encarcerou, refém de suas carências e medos.
Ela tentou se afastar, buscar o que pressentia ter perdido. Viajou, mudou o caminho rotineiro, não atendia o telefone, mas Rodolfo sempre aparecia depois de alguns períodos de distanciamento. Surgia abatido e com promessas de mudanças e discursos renovados.
Um dia, como se alertada de um diagnóstico de uma grave doença, Ana Maria percebeu que sua sanidade estava por um fio e que restava apenas a possibilidade de abortar o projeto amoroso e matar as esperanças com a cicatriz de uma desilusão.
Refugiou-se em seu mundo interior e tentou se reencontrar. Já estava irremediavelmente mudada, mas ainda havia possibilidade de recomeço, resgatando a auto-estima.
Alguns dias de silêncio. Ana Maria retornou aos trajetos cotidianos e viu de longe Rodolfo com o olhar manso e os gestos sedutores conversando com uma conhecida. Distante, assistiu à performance de Rodolfo com indiferença. Não sentia nada, talvez um pouco de pena de si própria. O mesmo olhar prometia as mesmas juras de amor. O cenário se abriu em uma nova perspectiva: a representação do projeto amoroso continuava com uma nova personagem.
Os passos se tornaram leves e sombreados com um sorriso esquecido. Não poderia apagar a história, os sonhos e as cicatrizes gravadas em sua alma, mas sentiu indiferença pelo passado. Compreendeu que algumas vezes viveu palavras que realmente não sentiu, jurou a eternidade quando só tinha o presente, também ludibriou e magoou os outros.
A autoria do estelionato emocional não tem um perfil definido. A prática do delito independe de sexo, idade ou nível social. Não há inocentes. São tantas as armadilhas e tantas as desculpas... O artifício mais poderoso é a esperança depositada no outro sem garantias do resgate do projeto pessoal íntegro.
Ana Maria...


ESTRICNINA


Abro o jornal de quinta-feira (15/03/2007) e passo os olhos pelas manchetes. O título “Mulher morre após fazer pacto de morte com o namorado” me chama atenção e inconscientemente traço um paralelo com a obra do dramaturgo William Shakespeare: Romeu e Julieta. Imagino dois jovens descobrindo o amor, lutando contra as intempéries cotidianas... O romantismo à beira do desespero e a morte como o desfecho da trama. Percorro o artigo e, logo nas primeiras informações, desfaço as analogias poéticas e ergo as cruéis realidades da modernidade.


Balzaquiana, realizada profissionalmente e independente encontra o amor num site de relacionamento e durante dois anos mantém um vínculo afetivo cercado de segredos e restrições. O homem apresenta-se virtualmente com todas as características almejadas por mulheres com o perfil da vítima. Logo no primeiro encontro, ele confidencia que é membro de um serviço secreto estrangeiro e que, como tem sua vida rastreada e corre perigo, é melhor que ela não saiba muito dos seus movimentos.


Com os meses, a relação se estreita. Ela está mais disponível e vulnerável enquanto as máscaras do amante caem. Ele é perseguido pelos medíocres, uma vítima da inveja de uma sociedade recalcada... Já com algum desencanto e muita persistência, ela o reconhece como um homem desempregado, refém de um matrimônio infeliz, e com dois filhos, mas com algumas alegorias consegue prosseguir na relação sem conhecer as verdadeiras intenções do namorado.


Uma pessoa apaixonada é sempre traiçoeira. É a primeira a sabotar os alertas das pessoas próximas e os sinais vermelhos que o instinto de preservação acende diante da constatação das inverdades do ser idealizado. É capaz de empreender uma luta contra as injustiças do mundo que mantém o amante desacreditado e infeliz; compreender as ausências, as notícias inacabadas e as faltas nos compromissos agendados, e ainda apoiar financeiramente o companheiro na recuperação de sua posição social tão propagada.


Inúmeras são as justificativas: “Ele só mentiu porque estava envergonhado de sua situação atual.”; “Dormem em quartos separados. Só estão casados por causa dos filhos.”; “Era urgente. Se eu não emprestasse, quem o faria?”. “Ele precisava do carro, só financiei em meu nome. Ele vai pagar as prestações...”; “Disse que é apenas uma questão de tempo.”; “Ele não suporta mais as cobranças da mulher”; “Coitado. Está tão infeliz!”...


Após a celebração do pacto, a morte da mulher e a prisão do reincidente golpista da internet, será difícil reconstituir as emoções e expectativas que culminaram no ato desesperado, contudo, existem situações em que não há como prosperar a alegação de inocência, mesmo considerando a tendência na personalidade de algumas vítimas de incorporarem os papéis de ingênuas. Pessoas maduras que, apesar de já terem suportado rupturas e desilusões afetivas, rendem-se às primeiras referências postadas num site de relacionamento e insistem em relações com intimidades construídas de acordo com as fragmentadas informações colhidas e com a íntima e forte contra-argumentação para as incoerências percebidas.


A morte da mulher é uma página que será apagada dos cenários virtuais e se repetirá em novos (des) encontros com perversa criatividade. Um enredo triste que se sustenta na carência das pessoas que, decepcionadas com os encontros reais, preferem mergulhar num mar de ilusões oxigenadas por falsos eus, eles, nós... Mais do que uma notícia, o caso (des) amoroso e policial é um tema para reflexão.



 Nossa Homenagem a Menina Eloá


2 comentários:

  1. Querida Helena
    Naquele efêmero instante entre a morte e o renascimento há um vermelho forte com curvas sombreadas, perfeitas! E um limão amarelado entre as folhas verdes, como um sol que desvela as manhãs. Uma rosa vermelha é teu interior... Bela! Beijos, José

    ResponderExcluir
  2. 3 anos hj que vc nos deixou...
    sinto sua falta Elooh.
    te amo.
    Cáh

    ResponderExcluir

Editoria-Literacia