Como me tornei imortal
A grande maioria dos
seres humanos acredita na imortalidade. Cada um deles se diz constituído de
corpo e alma. Aquele morre, se desfaz, vira pó. Esta permanece intacta – a
pensar e sentir – e, após a morte de sua metade, voa para o céu, o paraíso,
onde está Deus, ou para o inferno ou sabe-se lá para onde. Essa grande maioria
é resignada, vive rindo, brincando, feito eternas crianças, por se crer regida
por Deus ou o Destino. Mesmo quando choram – diante do corpo sem vida de filhos,
pais, irmãos, amigos, ídolos – parecem rir: Deus quis assim, Deus quis agora.
A pequena minoria
dos seres humanos ou desacredita na imortalidade ou desconfia dessa
possibilidade. Cada um deles assim sofisma: Se não sou imortal, se meu corpo é
minha única morada, só me resta inventar outra eternidade. E assim surgiram as
agremiações de letras e artes.
Para alguns
escritores há duas maneiras de se alcançar a duração perpétua: pelo ingresso
numa dessas corporações ou com a publicação de suas obras por uma grande
editora. Se as duas portas se abrirem, melhor ainda: A vida eterna estará
garantida. Para os mais presumidos só serve a Academia Brasileira de Letras. Os
institutos menores (estaduais) ficariam para os escritores impúberes ou mais
pequenos. Os minúsculos (municipais) se reservariam aos escritores
insignificantes. Há, porém, ainda outras distinções: A entidade paulista seria
quase equipolente à federal; a acreana, a amapaense, a sergipana, por exemplo,
se equivaleriam a sociedades municipais; a paulistana valeria por uma filial da
ABL; a baturiteense não poderia se comparar à santista. Empossados nesta ou
naquela academia, todos alcançariam a imortalidade, no final, embora alguns,
logo após a morte do corpo, teriam a alma conduzida imediatamente ao céu,
enquanto outros dilatariam a interminável fila que conduz ao ponto derradeiro
do destino literário.
Publicar livros por
grandes editoras é mais fácil do que ingressar numa casa de acadêmicos. Basta o
sujeito ser famoso ou amigo (bajulador, dizem) de autoridades federais, de
outros entes famosos, ter muito dinheiro, etc. Por editora se entenda empresa
que edita livros, vende-os a livrarias, divulga-os para os meios de comunicação
de massa e paga direitos autorais.
Lá pelo início de
minha adolescência, compreendi que não tenho alma e, portanto, sou mortal.
Consciente disso, mais me pus a ler e escrever. E mais cônscio fiquei de que
não tenho alma e sou mortal. Apesar disso, passei a acreditar em mim mesmo, em
poder ser lembrado por mais um tempinho após minha morte, se escrevesse bem.
Minhas filhas, meus netos e seus contemporâneos poderiam se lembrar de mim e
ler minhas histórias. Passei mais muitos dias a ler e escrever. Fui morar em
Brasília, cidade de muitos imortais, a capital do futuro. Publiquei uns
livrinhos por pequenas editoras, ganhei alguns prêmios literários, de pouca
monta (nada comparado aos prêmios das loterias) e tinha sido um dos criadores
da revista O Saco (que me dava certo
prestígio no mundo das letras). Tudo isso junto deve ter atiçado a luxúria de
alguns imortais da capital. Que certamente cochichavam, enquanto cochilavam,
frases obscenas, quando me viam: A esse só falta ingressar na nossa hoste. Pois
eis que no meio do caminho desta vida (eu deveria ter uns quarenta anos,
supondo que viverei até os oitenta), me apareceu um desses seres eternos.
Chamava-se Almeida Fischer, que queria ser mais imortal do que era, pois
pertencia à Academia Brasiliense de Letras. Não se apresentou em corpo e alma,
para não se fazer tão objetivo; mandou um seu colega me fazer comunicado quase
letal: Eu fora escolhido para constituir a nova casa federal de letras, a
Academia de Letras do Brasil. Tomei susto, mas não morri. Ora, eu não queria
vestir fardão. Muito menos farda, que abominava e abomino militares.
Bastavam-me calça e camisa. Recuperado do susto, ouvi o complemento da fala do
emissário do futuro presidente do sodalício (assim eles, os imortais, gostam de
chamar suas agremiações): Iria me visitar noutro dia, para melhores
esclarecimentos. E foi. Era um sábado de muita preguiça (minha), depois de ter
passado a noite em bebedeira, a ouvir chorinhos. Alcançou-me de chinelos e
calção. Renovou os elogios a mim, explicou os motivos da nova arcádia, como se
me fizesse grande louvor e favor. Mal o deixei concluir o discurso. Agradeci os
gabos e disse duas ou três frases indecorosas: Não me sentia acadêmico,
sabia-me em fase de crescimento (embora tardio, a arcádia dentária ainda em
formação), despreparado para a vida (literária) adulta e não via nenhuma necessidade
de novos institutos de letras. Ele parecia não acreditar no que ouvia. Talvez
eu estivesse brincando. Ou delirando: Você bebeu muito ontem? Certamente me
ocorria um surto de loucura. Ora, quem não quer ser imortal, quem não se sente
excepcionalmente envaidecido (e comovido) de ser convidado a ingressar no
círculo restrito dos imortais? Prometi escrever carta a Fischer. Explicaria as
razões de minha recusa ao convite. O mensageiro saiu de minha casa como quem
sai de um cinema de horror. Escrevi a carta-bomba e a enviei ao morubixaba.
Dias depois eu soube da tragédia: O homem se tinha morrido. Ou tinha deixado de
ser vivo. Eu continuei mortal.
Nilto Maciel*
[Nilto
Maciel
*nasceu em Baturité, Ceará, em 1945. Ingressou na Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Ceará em 70. Criou, em 76, com outros escritores, a
revista O Saco. Mudou-se para
Brasília em 77, tendo trabalhado na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal
Federal e Tribunal de Justiça do DF. Regressou a Fortaleza em 2002. Editou a
revista Literatura, de 1992 a 2008.
Obteve primeiro
lugar em alguns concursos literários nacionais e estaduais: Secretaria de
Cultura e Desporto do Ceará, 1981, com o livro de contos Tempos de Mula Preta; Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará,
1986, com o livro de contos Punhalzinho
Cravado de Ódio; “Brasília de Literatura”, 90, categoria romance nacional,
promovido pelo Governo do Distrito Federal, com A Última Noite de Helena; “Graciliano Ramos”, 92/93, categoria
romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Alagoas, com Os Luzeiros
do Mundo; “Cruz e Sousa”, 96, categoria romance nacional, promovido pelo
Governo do Estado de Santa Catarina, com A
Rosa Gótica; VI Prêmio Literário Cidade de Fortaleza, 1996, Fundação
Cultural de Fortaleza, CE, com o conto “Apontamentos Para Um Ensaio”; “Bolsa
Brasília de Produção Literária”, 98, categoria conto, com o livro Pescoço de Girafa na Poeira; "Eça
de Queiroz", 99, categoria novela, União Brasileira de Escritores, Rio de
Janeiro, com o livro Vasto Abismo.
Organizou, com
Glauco Mattoso, Queda de Braço – Uma
Antologia do Conto Marginal (Rio de Janeiro/Fortaleza, 1977). Participa de
diversas coletâneas, entre elas Quartas
Histórias – Contos Baseados em Narrativas de Guimarães Rosa, org. por
Rinaldo de Fernandes (Ed. Garamond, Rio de Janeiro, 2006); 15 Cuentos
Brasileros/15 Contos Brasileiros, edición bilingüe español-portugués, org. por Nelson de Oliveira e
tradução de Federico Lavezzo (Córdoba, Argentina, Editorial Comunicarte, 2007);
e Capitu Mandou Flores, org. por
Rinaldo de Fernandes (Geração Editorial, São Paulo, 2008).
Tem contos e poemas
publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. O Cabra que Virou Bode foi transposto para a tela (vídeo), pelo
cineasta Clébio Ribeiro, em 1993. Seus livros estão publicados por pequenas
editoras de Fortaleza, São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Florianópolis,
Brasília e Campinas.
Livros publicados:
Itinerário, contos, 1.ª ed. 1974, ed. do Autor, Fortaleza, CE; 2.ª ed.
1990, João Scortecci Editora, São Paulo, SP.
Tempos de
Mula Preta, contos, 1.ª ed.
1981, Secretaria da Cultura do Ceará; 2.ª ed. 2000, Papel Virtual Editora, Rio
de Janeiro, RJ.
A Guerra da
Donzela, novela, l.ª ed. 1982, 2.ª ed. 1984, 3.ªed.
1985, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, RS.
Punhalzinho
Cravado de Ódio, contos, 1986,
Secretaria da Cultura do Ceará.
Estaca Zero, romance, 1987, Edicon, São Paulo, SP.
Os Guerreiros
de Monte-Mor, romance, 1988,
Editora Contexto, São Paulo, SP.
O Cabra que Virou Bode,
romance, 1.ª ed. 1991, 2.ª ed. 1992, 3.ª ed. 1995, 4.ª ed. 1996, Editora Atual,
São Paulo, SP.
As Insolentes
Patas do Cão, contos, 1991, João
Scortecci Editora, São Paulo, SP.
Os Varões de
Palma, romance, 1994, Editora Códice, Brasília.
Navegador, poemas, 1996,
Editora Códice, Brasília.
Babel, contos, 1997, Editora Códice, Brasília.
A Rosa
Gótica, romance, 1.ª ed. 1997, Fundação Catarinense
de Cultura, Florianópolis, SC (Prêmio Cruz e Sousa, 1996), 2.ª ed. 2002,
Thesaurus Editora, Brasília, DF.
Vasto Abismo, novelas, 1998, Ed. Códice, Brasília.
Pescoço de
Girafa na Poeira, contos, 1999,
Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica,
Brasília.
A Última
Noite de Helena, romance, 2003.
Editora Komedi, Campinas, SP.
Os Luzeiros do Mundo, romance, 2005. Editora Códice, Fortaleza, CE.]
Panorama do Conto Cearense, ensaio, 2005. Editora Códice, Fortaleza, CE.
A Leste da Morte, contos, 2006. Editora
Bestiário, Porto Alegre, RS.
Carnavalha, romance, 2007. Bestiário, Porto Alegre, RS.
Contistas do
Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil,
ensaio, 2008. Imprece, Fortaleza, CE.
Contos
reunidos (volume I) – reunindo Itinerário, Tempos de mula preta e Punhalzinho cravado de ódio - 2009. Ed.
Bestiário, Porto Alegre, RS.
Contos
reunidos (volume II) – reunindo As insolentes
patas do cão, Babel e Pescoço de girafa na poeira – 2010. Ed. Bestiário, Porto Alegre, RS.]
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