sábado, 29 de maio de 2010

Nilto Maciel*


Como me tornei imortal

A grande maioria dos seres humanos acredita na imortalidade. Cada um deles se diz constituído de corpo e alma. Aquele morre, se desfaz, vira pó. Esta permanece intacta – a pensar e sentir – e, após a morte de sua metade, voa para o céu, o paraíso, onde está Deus, ou para o inferno ou sabe-se lá para onde. Essa grande maioria é resignada, vive rindo, brincando, feito eternas crianças, por se crer regida por Deus ou o Destino. Mesmo quando choram – diante do corpo sem vida de filhos, pais, irmãos, amigos, ídolos – parecem rir: Deus quis assim, Deus quis agora.

A pequena minoria dos seres humanos ou desacredita na imortalidade ou desconfia dessa possibilidade. Cada um deles assim sofisma: Se não sou imortal, se meu corpo é minha única morada, só me resta inventar outra eternidade. E assim surgiram as agremiações de letras e artes.

Para alguns escritores há duas maneiras de se alcançar a duração perpétua: pelo ingresso numa dessas corporações ou com a publicação de suas obras por uma grande editora. Se as duas portas se abrirem, melhor ainda: A vida eterna estará garantida. Para os mais presumidos só serve a Academia Brasileira de Letras. Os institutos menores (estaduais) ficariam para os escritores impúberes ou mais pequenos. Os minúsculos (municipais) se reservariam aos escritores insignificantes. Há, porém, ainda outras distinções: A entidade paulista seria quase equipolente à federal; a acreana, a amapaense, a sergipana, por exemplo, se equivaleriam a sociedades municipais; a paulistana valeria por uma filial da ABL; a baturiteense não poderia se comparar à santista. Empossados nesta ou naquela academia, todos alcançariam a imortalidade, no final, embora alguns, logo após a morte do corpo, teriam a alma conduzida imediatamente ao céu, enquanto outros dilatariam a interminável fila que conduz ao ponto derradeiro do destino literário.

Publicar livros por grandes editoras é mais fácil do que ingressar numa casa de acadêmicos. Basta o sujeito ser famoso ou amigo (bajulador, dizem) de autoridades federais, de outros entes famosos, ter muito dinheiro, etc. Por editora se entenda empresa que edita livros, vende-os a livrarias, divulga-os para os meios de comunicação de massa e paga direitos autorais.

Lá pelo início de minha adolescência, compreendi que não tenho alma e, portanto, sou mortal. Consciente disso, mais me pus a ler e escrever. E mais cônscio fiquei de que não tenho alma e sou mortal. Apesar disso, passei a acreditar em mim mesmo, em poder ser lembrado por mais um tempinho após minha morte, se escrevesse bem. Minhas filhas, meus netos e seus contemporâneos poderiam se lembrar de mim e ler minhas histórias. Passei mais muitos dias a ler e escrever. Fui morar em Brasília, cidade de muitos imortais, a capital do futuro. Publiquei uns livrinhos por pequenas editoras, ganhei alguns prêmios literários, de pouca monta (nada comparado aos prêmios das loterias) e tinha sido um dos criadores da revista O Saco (que me dava certo prestígio no mundo das letras). Tudo isso junto deve ter atiçado a luxúria de alguns imortais da capital. Que certamente cochichavam, enquanto cochilavam, frases obscenas, quando me viam: A esse só falta ingressar na nossa hoste. Pois eis que no meio do caminho desta vida (eu deveria ter uns quarenta anos, supondo que viverei até os oitenta), me apareceu um desses seres eternos. Chamava-se Almeida Fischer, que queria ser mais imortal do que era, pois pertencia à Academia Brasiliense de Letras. Não se apresentou em corpo e alma, para não se fazer tão objetivo; mandou um seu colega me fazer comunicado quase letal: Eu fora escolhido para constituir a nova casa federal de letras, a Academia de Letras do Brasil. Tomei susto, mas não morri. Ora, eu não queria vestir fardão. Muito menos farda, que abominava e abomino militares. Bastavam-me calça e camisa. Recuperado do susto, ouvi o complemento da fala do emissário do futuro presidente do sodalício (assim eles, os imortais, gostam de chamar suas agremiações): Iria me visitar noutro dia, para melhores esclarecimentos. E foi. Era um sábado de muita preguiça (minha), depois de ter passado a noite em bebedeira, a ouvir chorinhos. Alcançou-me de chinelos e calção. Renovou os elogios a mim, explicou os motivos da nova arcádia, como se me fizesse grande louvor e favor. Mal o deixei concluir o discurso. Agradeci os gabos e disse duas ou três frases indecorosas: Não me sentia acadêmico, sabia-me em fase de crescimento (embora tardio, a arcádia dentária ainda em formação), despreparado para a vida (literária) adulta e não via nenhuma necessidade de novos institutos de letras. Ele parecia não acreditar no que ouvia. Talvez eu estivesse brincando. Ou delirando: Você bebeu muito ontem? Certamente me ocorria um surto de loucura. Ora, quem não quer ser imortal, quem não se sente excepcionalmente envaidecido (e comovido) de ser convidado a ingressar no círculo restrito dos imortais? Prometi escrever carta a Fischer. Explicaria as razões de minha recusa ao convite. O mensageiro saiu de minha casa como quem sai de um cinema de horror. Escrevi a carta-bomba e a enviei ao morubixaba. Dias depois eu soube da tragédia: O homem se tinha morrido. Ou tinha deixado de ser vivo. Eu continuei mortal.

Nilto Maciel*

        
[Nilto Maciel *nasceu em Baturité, Ceará, em 1945. Ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará em 70. Criou, em 76, com outros escritores, a revista O Saco. Mudou-se para Brasília em 77, tendo trabalhado na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF. Regressou a Fortaleza em 2002. Editou a revista Literatura, de 1992 a 2008.
Obteve primeiro lugar em alguns concursos literários nacionais e estaduais: Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 1981, com o livro de contos Tempos de Mula Preta; Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 1986, com o livro de contos Punhalzinho Cravado de Ódio; “Brasília de Literatura”, 90, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Distrito Federal, com A Última Noite de Helena; “Graciliano Ramos”, 92/93, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Alagoas, com Os Luzeiros do Mundo; “Cruz e Sousa”, 96, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Santa Catarina, com A Rosa Gótica; VI Prêmio Literário Cidade de Fortaleza, 1996, Fundação Cultural de Fortaleza, CE, com o conto “Apontamentos Para Um Ensaio”; “Bolsa Brasília de Produção Literária”, 98, categoria conto, com o livro Pescoço de Girafa na Poeira; "Eça de Queiroz", 99, categoria novela, União Brasileira de Escritores, Rio de Janeiro, com o livro Vasto Abismo.
Organizou, com Glauco Mattoso, Queda de Braço – Uma Antologia do Conto Marginal (Rio de Janeiro/Fortaleza, 1977). Participa de diversas coletâneas, entre elas Quartas Histórias – Contos Baseados em Narrativas de Guimarães Rosa, org. por Rinaldo de Fernandes (Ed. Garamond, Rio de Janeiro, 2006); 15 Cuentos Brasileros/15 Contos Brasileiros, edición bilingüe español-portugués, org. por Nelson de Oliveira e tradução de Federico Lavezzo (Córdoba, Argentina, Editorial Comunicarte, 2007); e Capitu Mandou Flores, org. por Rinaldo de Fernandes (Geração Editorial, São Paulo, 2008).
Tem contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. O Cabra que Virou Bode foi transposto para a tela (vídeo), pelo cineasta Clébio Ribeiro, em 1993. Seus livros estão publicados por pequenas editoras de Fortaleza, São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Florianópolis, Brasília e Campinas.

Livros publicados:
Itinerário, contos, 1.ª ed. 1974, ed. do Autor, Fortaleza, CE; 2.ª ed. 1990, João Scortecci Editora, São Paulo, SP.
Tempos de Mula Preta, contos, 1.ª ed. 1981, Secretaria da Cultura do Ceará; 2.ª ed. 2000, Papel Virtual Editora, Rio de Janeiro, RJ.
A Guerra da Donzela, novela, l.ª ed. 1982, 2.ª ed. 1984, 3.ªed. 1985, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, RS.
Punhalzinho Cravado de Ódio, contos, 1986, Secretaria da Cultura do Ceará.
Estaca Zero, romance, 1987, Edicon, São Paulo, SP.
Os Guerreiros de Monte-Mor, romance, 1988, Editora Contexto, São Paulo, SP.
O Cabra que Virou Bode, romance, 1.ª ed. 1991, 2.ª ed. 1992, 3.ª ed. 1995, 4.ª ed. 1996, Editora Atual, São Paulo, SP.
As Insolentes Patas do Cão, contos, 1991, João Scortecci Editora, São Paulo, SP.
Os Varões de Palma, romance, 1994, Editora Códice, Brasília.
         Navegador, poemas, 1996, Editora Códice, Brasília.
Babel, contos, 1997, Editora Códice, Brasília.
A Rosa Gótica, romance, 1.ª ed. 1997, Fundação Catarinense de Cultura, Florianópolis, SC (Prêmio Cruz e Sousa, 1996), 2.ª ed. 2002, Thesaurus Editora, Brasília, DF.
Vasto Abismo, novelas, 1998, Ed. Códice, Brasília.
Pescoço de Girafa na Poeira, contos, 1999, Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, Brasília.
A Última Noite de Helena, romance, 2003. Editora Komedi, Campinas, SP.

Os Luzeiros do Mundo, romance, 2005. Editora Códice, Fortaleza, CE.]

Panorama do Conto Cearense, ensaio, 2005. Editora Códice, Fortaleza, CE.

         A Leste da Morte, contos, 2006. Editora Bestiário, Porto Alegre, RS.
Carnavalha, romance, 2007. Bestiário, Porto Alegre, RS.
Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil, ensaio, 2008. Imprece, Fortaleza, CE.
Contos reunidos (volume I) – reunindo Itinerário, Tempos de mula preta e Punhalzinho cravado de ódio - 2009. Ed. Bestiário, Porto Alegre, RS.
Contos reunidos (volume II) – reunindo As insolentes patas do cão, Babel e Pescoço de girafa na poeira – 2010. Ed. Bestiário, Porto Alegre, RS.]


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