segunda-feira, 4 de outubro de 2010


Aqui jaz fulano de tal… e a sua superioridade!
por ANTONIO OZAÍ DA SILVA*

Para Maurício Tragtenberg (1929-1998), que cultivou e ensinou a humildade dos sábios.

“Matamos o tempo; o tempo nos enterra”. Machado de Assis


“Por que vos ensoberbece o orgulho, se não sois mais do que insetos imperfeitos, incompletos no seu desenvolvimento?”. Dante Alighieri

Ekatierina Ivânovna, personagem de Dostoiévski, em Crime e Castigo, é uma mulher de família relativamente próspera, mas que caiu na pobreza. Seu marido, alcoólatra, morre atropelado e, conforme o costume da época, ela oferece um repasto em memória do defunto. Mesmo na miséria, doente, com três filhos para criar, sem renda alguma e dependente de caridade, Ivânovna gasta boa dos vinte rublos, que recebeu como ajuda para os preparativos do funeral, para preparar o banquete cerimonial e mostrar aos seus convidados que o falecido, e também ela, não eram de classe inferior a eles, mas até mesmo superior.

Dostoiévski chama a atenção para este orgulho especial, que leva as pessoas, ainda que pobres, a “esgotarem as suas últimas forças e até o último copeque apenas com o fim de não fazerem pior que os outros e de que os outros não façam má opinião acerca deles”. (2003: 351) Por que esta necessidade de manter as aparências? Seria o receio da desaprovação ou o auto-engano de parecer superior aos outros?

Esta necessidade é tão antiga quanto as sociedades humanas: nos impérios antigos, nas cortes e entre os burgueses, na classe média moderna ou qualquer grupo humano privilegiado, estabelecem-se costumes, comportamentos e rituais específicos que indicam distinção. No século XVI, Montaigne observava que:

“Seja o que for, artifício ou natureza, isso que nos imprime a condição de viver da comparação com outrem, faz-nos muito mais mal que bem. Privamo-nos daquilo que nos é útil para atender às aparências e à opinião dos outros. Não nos importa tanto saber o que é nosso ser em si e em efeito quanto saber o que é ele para o conhecimento publico. As próprias riquezas do espírito e a sabedoria nos parecerão infrutíferas se só forem desfrutadas por nós, se não forem produzidas para a vista e a aprovação alheia”. (1998: 19)

Isto produz situações interessantes. Mesmo com a decadência, certos indivíduos ainda agem como se continuassem nobres, ricos, privilegiados; ainda que imersos na miséria, sentem-se superiores aos seus companheiros de infortúnio. Tomasi de Lampedusa, em O Leopardo, relata como a decadente nobreza italiana estabelece laços com a burguesia ascendente, em especial, através do subterfúgio do casamento. Como podemos observar no diálogo de don Calogero com o Príncipe Fabrizio acerca do casamento de Angelica, filha do burguês, com Tancredi, da casa Falconeri. O Príncipe, homem inteligente e perspicaz, sabe que deve se render aos novos tempos e que o futuro do sobrinho, depende menos da tradição dos títulos da nobreza e muito mais do dinheiro do burguês. Num arrombo de humildade, que significa humilhação social, o Príncipe afirma:

– Mas, don Calogero – prosseguia o príncipe, mastigando o que restava da pílula –, se é inútil falar-lhe da antiguidade da casa Falconeri, é, infelizmente também inútil dizer-lhe, porque já o sabe, que as atuais condições financeiras do meu sobrinho não correspondem à grandeza do seu nome. (LAMPEDUSA, 1974: 138)

O burguês, por seu turno, tem consciência do seu poder econômico, mas, mesmo assim, se apega à moral da superioridade fundada na tradição nobiliárquica. É ridículo, e ao mesmo tempo engraçado, sua tentativa de convencer o Príncipe de que também tinha origens nobres:

– Príncipe, sei que o que vou dizer pouca impressão vos fará, pois descendeis dos amores do Imperador Tito e da Rainha Berenice; mas também os Sedàra são nobres; até aqui foi uma família infeliz, enterrada na província, sem lustro; mas tenho os papéis em ordem nas minhas gavetas, e um dia, saber-se-á que o vosso sobrinho casou com a Baronesa Sedára del Biscotto, título concedido por sua Majestade Ferdinando IV aos secrezie do porto de Mazzara. (Id.: 140-141)

Também os nossos burgueses procuravam se distinguir a partir da compra de títulos que lhes dessem o status de barões, condes, etc., ou pela aquisição dos favores da casa real. Neste contexto, o bacharelismo também se configurou em simbologia distintiva: não bastava ostentar a riqueza, era preciso ter o diploma da universidade. Assim, os senhores das famílias ricas enviavam os filhos para estudar na Europa – condição não só de prestígio, mas de possibilidade de um bom emprego na burocracia do Estado ou ascensão no mundo da política.

A literatura nos fornece exemplos da importância dada ao bacharelismo enquanto ideologia de distinção. É o caso exemplar de Brás Cubas, personagem de Machado de Assis. Este, com fina ironia, narra que fora estudar na Universidade de Coimbra, onde o aguardava “as suas matérias árduas”, estudadas “mediocremente”. Nem por isso, Brás Cubas deixou de ser diplomado:

“No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava a liberdade, dava a responsabilidade. Guardei-o, deixei as margens do Mondego, e vim por ali fora assaz desconsolado, mas sentindo já uns ímpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar os outros, de influir, de gozar, de viver, – de prolongar a Universidade pela vida adiante…” (1988: 30-31)

A outro dos nossos romancistas maiores, Lima Barreto, também não passou despercebido que o acesso aos títulos universitários patenteava distinção econômica e simbólica, argumento de autoridade e superioridade. Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, o rapaz, mulato e pobre, emigra para a cidade e, sofrendo as agruras da adaptação e os preconceitos racistas, sonha em ser doutor, isto é, em fazer o curso superior. Adquirir o diploma, o título de Doutor, representa o sonho de redenção da sua condição social:

“Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor…”. (…) Ah! Doutor! Doutor!… Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos… Era um pallium, era alguma coisa como clâmide sagrada, tecida com um fio tênue e quase imponderável, mas a cujo encontro os elementos, os maus olhares, os exorcismos se quebravam. De posse dela [a carta, diploma], as gotas de chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O indivíduo distribuidor de raios solares escolheria os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o comum dos homens que não é doutor”. (1995: 26)

A que ponto chega a vaidade humana: o título de doutor não apenas lhe aparece como redentor como, em sua imaginação, o eleva acima dos demais humanos até mesmos aos olhos da divindade que distribui os dons da natureza. E, de fato, há quem imagine ser a própria divindade!

Lima Barreto expõe com maestria o fetiche do diploma, do título de doutor. Ouso afirmar que nem toda a teoria sociológica seria capaz de apreender o significado exato do sentimento de superioridade expresso em sua posse, tão bem descrito por este escritor:

“Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo-intanha antes de ferir a martelada à beira do brejo, andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo comprimentos: Doutor, como passou? Como está, doutor? Era sobre-humano!… (…)

Quantas prerrogativas, quantos direitos especiais, quantos privilégios, esse título dava! Podia ter dois e mais empregos apesar da Constituição; teria direito à prisão especial e não precisava saber nada. Bastava o diploma. Pus-me a considerar que isso devia ser antigo… Newton, César, Platão e Miguel Ângelo deviam ter sido doutores!

Foram os primeiros legisladores que deram à carta esse prestígio extraterrestre… Naturalmente, teriam escrito nos seus códigos: tudo o que há no mundo é propriedade do doutor, e se alguma coisa outros homens gozam, devem-no à generosidade do doutor. Era uma outra casta, para a qual entraria, e desde que penetrasse nela, seria de osso, sangue e carne diferente dos outros – tudo isso de uma qualidade transcendente, fora das leis gerais do Universo e acima das fatalidades da vida comum”. (Id. 26-27)

De “osso, sangue e carne”, tão mortal e humano, demasiadamente humano. E, no entanto, essa necessidade premente de sentir-se superior, sobre-humano, acima dos mortais. São os paroxismos da vaidade que acometem até mesmo os pobres e desvalidos.

Quem conhece o campo acadêmico e tem o mínimo de sensibilidade, o suficiente para não se deixar cegar pela vaidade, saberá reconhecer o quanto as palavras de Lima Barreto expressam comportamentos atuais. É claro, o mundo mudou, mas permanece a necessidade de distinção e muitos ainda se consideram superiores, quase que imortais!

Como nota BOURDIEU (1974: 107), os intelectuais constituem sociedades de admiração mútua. Há no campo intelectual uma propensão ao narcisismo, à pretensão da superioridade fundamenta em titulações e diplomas. Se a vaidade é natural do humano, entre os intelectuais ela é favorecida pelo caráter da sua própria atividade – o que Bourdieu denomina de circulação circulante, no sentido de que estes produzem bens simbólicos a serem consumidos por seus próprios pares e, também, por serem, simultaneamente, produtores e consumidores dos próprios bens e dos bens de outros. Assim, o status dos intelectuais depende do reconhecimento dos pares:

“Afora os artistas e os intelectuais, poucos agentes sociais dependem tanto, no que são e no que fazem, da imagem que têm de si próprios e da imagem que os outros e, em particular, os escritores e artistas, têm deles e do que eles fazem. “Há qualidades, escreve, Jean-Paul Sartre,que nos chegam unicamente através dos juízos do outro”. (Id.: 108)

O artista, o escritor, o intelectual, estão submetidos à lei da dialética da distinção. Ou seja, pela maneira como funciona o campo intelectual, este tem que, necessariamente, perseguir a distinção. Para BOURDIEU, isto não constitui um defeito pessoal, um “vício da natureza” humana egoísta. Ele observa que a mesma lei que impele o intelectual a perseguir a distinção “impõe também os limites no interior dos quais tal busca pode exercer legitimamente sua ação”. (Id: 109)

Ou seja, não é o reino do vale tudo! BOURDIEU rompe com a hipocrisia de uma falsa humildade que nega a real necessidade de distinguir-se. Ele adverte que não jogar o jogo é o mesmo que decretar a própria morte social. (2000: 85)

Por que um título acadêmico – ou a simples perspectiva de adquiri-lo – alimenta comportamentos arrogantes? E, observemos, nem estamos tratando da odiosa superioridade própria dos espíritos preconceituosos e imbuídos de valores racistas, mas dos procedimentos comumente observáveis no cotidiano, em especial nos espaços onde as almas vaidosas transitam em maior número. Aliás, a arrogância que induz ao preconceito social caminha irmanada com o racismo.

Mais do que uma opinião, um comportamento, a afirmação da superioridade constitui em arma social e política necessária à manutenção da distinção – se não econômica, ao menos simbólica – de determinados extratos da sociedade em relação a outros. Não constitui um problema meramente individual: o indivíduo não está solto no ar; seu chão social, a família, o campo que atua, suas relações sociais, influenciam determinantemente o habitus incorporado. Isto explica porque determinados indivíduos negam, na prática social, suas origens humildes. Estes assimilam os valores do novo estrato social ao qual se inserem e passam a pensar á maneira superior, procurando distinguirem-se dos de baixo e também em relação ao grupo social que se incluem.

Um comportamento peculiar nestes casos é se pautar por referências sociais e culturais dos grupos sociais hierarquicamente bem-sucedidos. Assim, a classe média economicamente remediada, perdulária e dependente do crédito bancário, age à maneira de Ekatierina Ivânovna, gastando o que não tem para manter as aparências. “Em todas as nossas vicissitudes, comparamo-nos a quem está acima de nós e olhamos para os que estão melhor; comparemo-nos ao que está abaixo: não há ninguém tão desazado que não encontre mil exemplos em que se consolar”, ensina Montagne. (1998: 26)

De todos os livros que li até o presente, um dos que mais me fizeram refletir sobre este tema foi Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Com a morte, tudo se resolve: afinal que superioridade resiste aos vermes que dilaceram o corpo? Todos os epitáfios imagináveis são incapazes de nos livrar dessa vil condição.

Enfim, a morte nos iguala. Mas este raciocínio, se aprofundado, revela-se ilusório e ingênuo. A morte não é apenas um fenômeno natural: ela é também cultural e social. A morte é a mesma, mas a maneira de morrer e de proceder com o morto são diferentes. Por exemplo, alguns mortos são enterrados em rituais de pompa, nos melhores cemitérios, nas melhores condições – se isto para o morto é indiferente, não o é para a sua família; e, no final das contas, todo o ritual procura atestar a sua superioridade; outros são enterrados como indigentes; e, ainda outros, endividam-se para garantir as condições mínimas para o funeral.

Não obstante, ainda que as diferenças persistam até mesmo no ato de tratar a morte e o morto, nada nos livrará de morrer, Todos os títulos acadêmicos, riquezas imaginárias ou reais e sentimentos de superioridade não nos livrarão do inexorável: somos mortais. Quem sabe, aqueles que se sentem superiores e agem como tais, assim o fazem apenas para desafiar esta verdade? Não seria a vaidade um artifício dos incapazes de enfrentar a consciência da finitude? Não seria o agir de maneira superior o último suspiro contra a morte?

Muitos se recusam a admitir a própria morte. Não adianta: nada a evitará. Talvez, então, seja aconselhável encarar a vida com mais simplicidade e humildade: viveremos melhor, morreremos melhor… “A morte nos liberta de tudo: de toda hipocrisia”, escreve Machado de Assis. (1988: 34) De qualquer forma, a vaidade e sentimento de superioridade serão enterrados – ou incinerados – com o nosso corpo. “Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há platéia”. (Id.)


[Harmen Steenwyck - As vaidades da vida humana]

Referências

ALIGHIERI, Dante. (2003) A Divina Comédia. São Paulo: Nova Cultural.

BARRETO, Lima. (1995) Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Ática.

BOURDIEU, P. (1974) A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Editora Perspectiva.

__________. (2000) O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

DOSTOIÉVSKI, F. (2003) Crime e Castigo. São Paulo: Nova Cultural.

LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi di. (1974) O Leopardo. São Paulo: Abril Cultural (Clássicos Modernos, 5)
Fonte:Revista Espaço Acadêmico

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. (1988) Memórias póstumas de Brás Cubas. Santiago (Chile), Editora América do Sul LDA. (Biblioteca de Ouro da Literatura Universal)

MONTAIGNE. (1998) Sobre a Vaidade. São Paulo: Martins Fontes.
Fonte:Revista Espaço Acadêmico
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