As letras do maior esporte nacional por Deonísio da Silva
Para o escritor e professor Deonísio da Silva, a
literatura, com raras exceções, jamais deu a devida importância à relação entre
jogadores e torcedores.
O futebol está para a literatura brasileira assim como o
camelo para o Alcorão. Ninguém nega a importância de cada um dos temas nos
respectivos domínios, mas se não encontramos o camelo em nenhuma das suratas
(as divisões do Alcorão), também o futebol tem sido evitado por nossos poetas e
prosadores. Isto é, até o presente quem se aventurou escreveu bem. Por escrever
bem, entendamos mais o estilo do que o conteúdo, ainda que tal separação seja
complicada, porque a forma influencia o conteúdo e vice-versa, mas escrever é
fingir e no mentiroso admiramos mais o seu modo de narrar do que o narrado.
Vamos a uns poucos exemplos. Graciliano Ramos deu o
pontapé inicial. Escreveu um texto lindo, triste e pessimista, prevendo que o
futebol, como do cinema disseram os Irmãos Lumière, seria uma invenção sem
futuro entre nós. O ofício de prever impõe alguns tributos aos profetas, sendo
o mais devastador o erro puro e simples. Os fatos desmentiram nosso grande
ficcionista. Décadas depois, Edilberto Coutinho arrebatou o prestigioso Prêmio
Casa de Las Américas com Maracanã, adeus, em que futebol, jogadores e domínios
conexos compõem os cenários dos contos.
Rubem Fonseca, em Feliz ano novo, o livro que a ditadura
militar mais abominou porque foi obrigada a mostrar como funcionavam as
proibições e a censura, apresenta-nos uma história de amor repleta de
compaixão, intitulada ''Abril, no Rio, em 1970''. Zezinho namora Nely, que não
é de jogar fora, mas sonha com a ascensão social pelo futebol: ''eu tinha que
comer a bola no domingo, do Madureira para a seleção, bola com Zezinho, é
goool! A multidão gritava dentro de minha cabeça''. No campo, derrota anunciada
é combatida assim pelo personagem: “vamos virar esse placar, pessoal, eu disse
para os companheiros, botando a bola debaixo do braço e correndo para o meio do
campo, pra dar a saída, igual o Didi na final da copa de sessenta e dois”. O
vascaíno Rubem Fonseca enganou-se. gesto de Didi ocorrera na final da copa de
58, quando a Suécia fez 1 x 0 diante de atônitos brasileiros que então
reagiram. Em 1998, a
França fez três e ninguém reagiu, talvez porque não houvesse nenhum Didi em
campo.
Carlos Drummond de Andrade dedicou vários poemas e
crônicas ao futebol, provavelmente porque sua sensibilidade poética e
perspicácia tenham sido fertilizadas pela atuação constante na imprensa. João
Cabral de Melo Neto fez uma verdadeira ode a Ademir da Guia, enaltecendo
justamente seu estilo. Também Affonso Romano de Sant´Anna escreveu vários
poemas e crônicas sobre futebol e é autor de uma façanha até agora insuperável.
Na Copa de 1986, terminada cada partida do Brasil, escolhia um lance e fazia
sobre ele um poema às pressas, declamado no mesmo dia na televisão.
No romance, quem mais ousou foi o fluminense Ewelson
Soares Pinto com A crônica do valente Parintins, em que as tramas passam pela
Era Vargas, pela Segunda Guerra Mundial, mas os cenários mais fascinantes estão
em peladas e jogos memoráveis. Contudo, entre esses poucos exemplos, que
tiveram principalmente o mérito de evitar o alheamento a tema tão apaixonante,
nenhum poeta, contista ou romancista deu ao futebol a transcendência que lhe
conferiram os irmãos Mário Rodrigues e Nelson Rodrigues, embora seja mais
conhecido o segundo, autor dessas frases memoráveis: “qualquer técnico tem a
torva e atra vaidade de uma prima-dona gagá, cheia de pelancas e varizes; quem
ganha e perde as partidas é a alma; a arbitragem normal e honesta confere às
partidas um tédio profundo, uma mediocridade irremediável”.
O Alcorão omite o camelo, mas inclui a vaca, as formigas,
a aranha, o elefante, o cavalo. Os escritores brasileiros, em sua maioria, têm
evitado o futebol. Tal lacuna não empobrece nossas letras, mas nos desconcerta
e sugere certas sobrenaturalidades nessa falta. Será que o vôlei, o basquete, o
beisebol, o tênis e o xadrez não oferecem as mesmas assimetrias para quem
escreve? Talvez seja porque o esporte, à semelhança da guerra e do amor, seja
tão grandioso que é simplesmente impossível aumentá-lo. Com efeito, autor vem
do latim auctor, o que aumenta, faz crescer. Na Roma Antiga, antes de designar
quem escrevia, indicou os generais conquistadores.
Deonísio da Silva *
[O escritor e professor Deonísio da Silva é Doutor em
Letras pela USP tem mais de trinta livros publicados, entre romances, contos e
ensaios. É o atual Pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de
Sá. ]
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