Luiz Felipe Jardim
Alguns amigos, algum dia, dirão que só não tenho
memória de cera porque sou a própria cera que envolve a memória.
Menos. Menos, amigos. Sei que tenho muito
boa memória, mas sei também que não é tanto assim. Não me lembro de muita coisa
que gostaria de lembrar. Por exemplo, gostaria de me lembrar de quando eu tinha
quatro, cinco, ou então ali pelo comecinho dos seis. Mas não, não consigo me
lembrar de nada dessa época. Só comecei a dar conta de mim realmente, só
comecei saber que existia, quando eu estava ali na curva dos seis meses, nos
seis meses e meio mais exatamente. Só a partir daí é que começo a me conhecer
como gente.
As minhas primeiras lembranças são as dos
sons. Especialmente as de um som permanente, suave, profundo, ao qual eu me
sentia umbilicalmente ligado. Foi ouvindo aquele som, na quase profunda
calmaria do mundo, que eu me senti pela primeira vez. Senti que existia. Que eu
era eu. Ali eu nasci em mim.
É bem certo que para o mundo lá fora eu nem
existia, portanto eu nem era eu ainda. Ainda mais que eu não podia estar
sozinho por nem um minuto. Por isso, por estar ali num paraíso, eu existia,
aproveitava e curtia a vida. Sim porque não
havia muita coisa a se fazer além de crescer. Eu já me ocupava demasiado em fazer
o meu coraçãozinho ficar maior, em dar um pouco mais de cor aos meus olhos,
coisinhas assim. Mas para passar o tempo e entender melhor outras coisas dei
asas aos meus ouvidos e me pus a escutar. E foi nas asas dos ouvidos que percebi
que aquele som contínuo, agradável e vital que eu ouvia e sentia, pulsava num
ritmo de 72 batidas por minuto. É esse o ritmo com que pulsam os corações dos
humanos adultos. Só bem depois vim saber que os bebês humanos, quando no colo
das mães, esperam que elas os abracem de modo que seus ouvidos fiquem o mais
perto possível do coração. O que eles querem é ouvir aquele som, naquele ritmo,
no ritmo do coração. No ritmo em que eles entraram no mundo.
Entraram no mundo é uma maneira de dizer.
Porque o mundo do útero, o mundo por aonde todos chegam à vida, é outro mundo. Aí
você não anda, não fala, não sente gosto, nem mesmo respira com seus pulmões...
sô!!!! Mas ouve. Logo aos seis meses, ouve. E o primeiro som é sempre aquele, o
de 72 batidas por minuto. O som do coração que dança a sua dança da vida.
Na falta de outros estímulos eu ouvia. E
envolto por uma temperatura morna, também constante, eu me sentia
permanentemente abraçado por um abraço total, suavemente quente, que envolvia
cada ponto meu e me protegia com sensações boas e poderosas.
Afora isso eu flutuava. Sabe aquela
sensação que a gente fica tendo, de vez em quando, depois de passar longo tempo
andando de barco, ou depois de ficar muito tempo imerso em águas que ondulam? A
gente fecha os olhos e sente como se estivesse flutuando; como que estivesse
sendo carinhosamente embalados por pequenas ondas que vão e vêm silenciosas e
prazerosas. Pois essa sensação é quase que uma reminiscência daquelas que
tínhamos quando ainda no útero. Envoltos no líquido amniótico, também nos
balançávamos quando nossas mães se movimentavam. Num movimento harmônico,
sonoro, quente, prazeroso.
Essas são as primeiras notícias que posso
dar de mim de quando me conheci: que eu estava envolto por um abraço total, quente
e permanente; que eu flutuava num embalo suave e prazeroso; e que eu ouvia as
batidas do coração de minha mãe. 72 pulsações por minuto. O ritmo de pulsação do
paraíso.
Mas todo paraíso é só um ninho. Um espaço
de passagem. Um espaço natural para o pouso ágil, fértil e fugaz. Um espaço grávido
de encantamentos, onde a vida pousa, nasce e vive. Mas de onde a vida deve sair
rapidamente para que possa nascer e viver.
Sair rapidamente é maneira de dizer. De lá
não se sai. De lá se é expulso. Para sempre. De lá se é lançado fora, para
nunca mais voltar.
De repente, em poucas horas, a erupção de
uma fúria opressora se apossa daquele universo e o paraíso é violentamente
destruído. O abraço total, sonoro, carinhoso e reconfortante, no caos em que tudo
se transforma, é agora apertos que esmagam. Tudo o que existe e é bom é impiedosamente
destruído para que aconteça a experiência mais traumática de toda a nossa vida:
Nascer. E nascer não é fácil. Ninguém
aprende a nascer antes do ato. Quando se vê já se está nascendo, numa viagem
sem volta. Nascer se aprende nascendo. Ou você nasce ou não nasce. Ninguém pode
nascer por você. É certo que essa pressão do ‘ou nasce ou não nasce’, mais os
empurrõezinhos que mãe e natureza dão, facilitam um pouco mais as coisas, mas
não torna nada fácil o nascimento.
Não é sem motivos que os bebês chegam ao
outro lado da vida aos berros e prantos, com uma tensa e convulsa expressão da
mais pura e profunda desesperação. É que
eles trazem consigo o sentimento de quem foi expulso do paraíso às cegas, e às
cegas, chegou a um mundo que ainda não vê.
E quando se vê... nasceu!!! Quando se
percebe, se está no mundo!!! Literalmente num vale de lágrimas. Nascido.
Nascido é maneira de dizer. Ainda há muito
chão, nos caminhos de quem mal começou a sugar ares com o próprio fôlego.
Sugar o ar, respirar é a primeira coisa que
fazemos quando nascemos. É essa a marca de nosso nascimento. É esse o carimbo com
o qual a natureza oficializa nossa nascença. Mas o choro rouba a cena. É que em
cinco ou seis segundos após o nosso primeiro alento, começamos a chorar. A
chorar e a mover cabeça, braços e pernas. Nosso berro pode ser ouvido à
distância, e isso impressiona mais aos humanos que o ato mais silencioso e
sutil de respirar. Daí que somos mais uma vez carimbados com simbólica certidão
de nascimento. Desta vez pelo choro em que nos pomos logo ao nascer. Por cerca
de meia hora choramos, protestamos, nos sacudimos, até que caímos em nós
mesmos. Uma vez dentro de nós, nos abrigamos em largo e profundo sono.
Não nos lembramos de quando estávamos
sonhando o sonho do nosso primeiro sono. Mas sei que sonhamos o sonho que todos
sonham pela primeira vez. Sonhamos com sons e flutuações, com luzes e prantos e
com música. Uma música especial, própria, bem particular. Uma música que
somente quem a tem sabe ouvir, sentir, dançar ou cantar. Uma música de 72
batidas por minuto. Que passa a existir dentro
de cada um de nós.
É com essa música embalando nosso primeiro
sono que ainda em nosso primeiro sonho nos encontramos com nossa alma. Quando a
reconhecemos, nos abraçamos num abraço tão envolvente, tão profundo, tão
intenso que nos fazemos um. Mas por sermos agora nós e nossa alma, e não
podermos mais ser só nós ou só nossa alma, resultamos em mais um ainda, que é o
termo da fusão de nós e nossa alma: o nosso espírito. Os três que agora somos um,
nós, alma e espírito, celebramos nossa comunhão, com a dança da vida, a 72
pulsações por minuto.
Nesse momento, em que dançamos, estamos tão
profundamente imersos em nós mesmos, que nada nos acordará da celebração da
vida que estamos a fazer. Na verdade, estamos nascendo mais uma vez. Agora de
uma maneira sutil, espiritual, imaterial, mas nem por isso menos intensa ou importante.
Nesse outro nascimento nos encontramos com os elementos simbólicos fundamentais
que dentro de nós darão formas às fisionomias que viremos a ter por toda a
nossa vida. É aí que encontramos nossa índole; é aí que encontramos e sorvemos
nossos sentimentos; é aí que vislumbramos nossos pensamentos e conhecemos-lhes
a fonte; é aí que pela primeira vez acariciamos nossas sensações; é aí que
somos apresentados e ligados à vontade e ao desejo; é aí que vemos já vívidas,
as lembranças e para elas acenamos. Todos dentro de nós. Profundamente. Reunindo-nos
em nós e celebrando nosso nascimento. Celebrando a nossa existência. É aí que sorvemos o sopro da vida. À Vida abraçamos
num abraço total. Também assim por ela somos abraçados. Em nós a vida se realiza,
e realiza sua eterna tarefa de viver. Generosa nos mostra sua viagem desde a
primeira célula que um dia pulsou. Generosa nos apresenta à memória o que um
dia viremos a ser, para que nos miremos e que sejamos exatamente o que um dia,
seremos. Nascemos aprendendo a nascer.
Aprendendo a nascer é modo de dizer. Pois a
nascer ninguém aprende. Simplesmente se nasce.
Mas
ali no compadrio do nascimento social, real, material, e na intimidade do
nascimento simbólico, onírico, espiritual, se aprende a aprender a nascer (mesmo
que a isso ninguém aprenda). Ali, se aprende que dentro de nós estão as forças
necessárias para conquistarmos o mundo depois que o mundo se acaba. Ali aprendemos que na profunda entrega a nós
próprios e às nossas mais íntimas verdades, mais nós mesmos a nós mesmos fazemos.
Mais em nós mesmos nos tornamos. Aprender a nascer é isso: é aprender a tecer a
fisionomia do vir a ser. É saber trazer para nós a vida. É saber levar à vida a
nossa existência. É saber inspirar e trazer para nossa alma individual e levar
ao espírito coletivo os ares das coisas novas que nós e a vida, juntos, devemos
viver.
Que nós e a vida devemos viver é maneira de
dizer... mas acho que vamos ter que falar disso depois, porque estou achando
que o tempo tá mudando... e que está chegando a minha hora de... nnnnaaaasssssccccceeeeeerrrrrrrr.......
Luiz Felipe Jardim
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