sábado, 5 de fevereiro de 2011


                                                                                 Nascendo

                                                                                                      Luiz Felipe Jardim
Alguns amigos, algum dia, dirão que só não tenho memória de cera porque sou a própria cera que envolve a memória.
Menos. Menos, amigos. Sei que tenho muito boa memória, mas sei também que não é tanto assim. Não me lembro de muita coisa que gostaria de lembrar. Por exemplo, gostaria de me lembrar de quando eu tinha quatro, cinco, ou então ali pelo comecinho dos seis. Mas não, não consigo me lembrar de nada dessa época. Só comecei a dar conta de mim realmente, só comecei saber que existia, quando eu estava ali na curva dos seis meses, nos seis meses e meio mais exatamente. Só a partir daí é que começo a me conhecer como gente.
As minhas primeiras lembranças são as dos sons. Especialmente as de um som permanente, suave, profundo, ao qual eu me sentia umbilicalmente ligado. Foi ouvindo aquele som, na quase profunda calmaria do mundo, que eu me senti pela primeira vez. Senti que existia. Que eu era eu. Ali eu nasci em mim.
É bem certo que para o mundo lá fora eu nem existia, portanto eu nem era eu ainda. Ainda mais que eu não podia estar sozinho por nem um minuto. Por isso, por estar ali num paraíso, eu existia, aproveitava e curtia a vida.  Sim porque não havia muita coisa a se fazer além de crescer. Eu já me ocupava demasiado em fazer o meu coraçãozinho ficar maior, em dar um pouco mais de cor aos meus olhos, coisinhas assim. Mas para passar o tempo e entender melhor outras coisas dei asas aos meus ouvidos e me pus a escutar. E foi nas asas dos ouvidos que percebi que aquele som contínuo, agradável e vital que eu ouvia e sentia, pulsava num ritmo de 72 batidas por minuto. É esse o ritmo com que pulsam os corações dos humanos adultos. Só bem depois vim saber que os bebês humanos, quando no colo das mães, esperam que elas os abracem de modo que seus ouvidos fiquem o mais perto possível do coração. O que eles querem é ouvir aquele som, naquele ritmo, no ritmo do coração. No ritmo em que eles entraram no mundo.
Entraram no mundo é uma maneira de dizer. Porque o mundo do útero, o mundo por aonde todos chegam à vida, é outro mundo. Aí você não anda, não fala, não sente gosto, nem mesmo respira com seus pulmões... sô!!!! Mas ouve. Logo aos seis meses, ouve. E o primeiro som é sempre aquele, o de 72 batidas por minuto. O som do coração que dança a sua dança da vida.
Na falta de outros estímulos eu ouvia. E envolto por uma temperatura morna, também constante, eu me sentia permanentemente abraçado por um abraço total, suavemente quente, que envolvia cada ponto meu e me protegia com sensações boas e poderosas.
Afora isso eu flutuava. Sabe aquela sensação que a gente fica tendo, de vez em quando, depois de passar longo tempo andando de barco, ou depois de ficar muito tempo imerso em águas que ondulam? A gente fecha os olhos e sente como se estivesse flutuando; como que estivesse sendo carinhosamente embalados por pequenas ondas que vão e vêm silenciosas e prazerosas. Pois essa sensação é quase que uma reminiscência daquelas que tínhamos quando ainda no útero. Envoltos no líquido amniótico, também nos balançávamos quando nossas mães se movimentavam. Num movimento harmônico, sonoro, quente, prazeroso.
Essas são as primeiras notícias que posso dar de mim de quando me conheci: que eu estava envolto por um abraço total, quente e permanente; que eu flutuava num embalo suave e prazeroso; e que eu ouvia as batidas do coração de minha mãe. 72 pulsações por minuto. O ritmo de pulsação do paraíso.
Mas todo paraíso é só um ninho. Um espaço de passagem. Um espaço natural para o pouso ágil, fértil e fugaz. Um espaço grávido de encantamentos, onde a vida pousa, nasce e vive. Mas de onde a vida deve sair rapidamente para que possa nascer e viver.
Sair rapidamente é maneira de dizer. De lá não se sai. De lá se é expulso. Para sempre. De lá se é lançado fora, para nunca mais voltar.
De repente, em poucas horas, a erupção de uma fúria opressora se apossa daquele universo e o paraíso é violentamente destruído. O abraço total, sonoro, carinhoso e reconfortante, no caos em que tudo se transforma, é agora apertos que esmagam.  Tudo o que existe e é bom é impiedosamente destruído para que aconteça a experiência mais traumática de toda a nossa vida: Nascer.  E nascer não é fácil. Ninguém aprende a nascer antes do ato. Quando se vê já se está nascendo, numa viagem sem volta. Nascer se aprende nascendo. Ou você nasce ou não nasce. Ninguém pode nascer por você. É certo que essa pressão do ‘ou nasce ou não nasce’, mais os empurrõezinhos que mãe e natureza dão, facilitam um pouco mais as coisas, mas não torna nada fácil o nascimento.   
Não é sem motivos que os bebês chegam ao outro lado da vida aos berros e prantos, com uma tensa e convulsa expressão da mais pura e profunda desesperação.  É que eles trazem consigo o sentimento de quem foi expulso do paraíso às cegas, e às cegas, chegou a um mundo que ainda não vê.
E quando se vê... nasceu!!! Quando se percebe, se está no mundo!!! Literalmente num vale de lágrimas. Nascido.
Nascido é maneira de dizer. Ainda há muito chão, nos caminhos de quem mal começou a sugar ares com o próprio fôlego.
Sugar o ar, respirar é a primeira coisa que fazemos quando nascemos. É essa a marca de nosso nascimento. É esse o carimbo com o qual a natureza oficializa nossa nascença. Mas o choro rouba a cena. É que em cinco ou seis segundos após o nosso primeiro alento, começamos a chorar. A chorar e a mover cabeça, braços e pernas. Nosso berro pode ser ouvido à distância, e isso impressiona mais aos humanos que o ato mais silencioso e sutil de respirar. Daí que somos mais uma vez carimbados com simbólica certidão de nascimento. Desta vez pelo choro em que nos pomos logo ao nascer. Por cerca de meia hora choramos, protestamos, nos sacudimos, até que caímos em nós mesmos. Uma vez dentro de nós, nos abrigamos em largo e profundo sono.
Não nos lembramos de quando estávamos sonhando o sonho do nosso primeiro sono. Mas sei que sonhamos o sonho que todos sonham pela primeira vez. Sonhamos com sons e flutuações, com luzes e prantos e com música. Uma música especial, própria, bem particular. Uma música que somente quem a tem sabe ouvir, sentir, dançar ou cantar. Uma música de 72 batidas por minuto.  Que passa a existir dentro de cada um de nós.
É com essa música embalando nosso primeiro sono que ainda em nosso primeiro sonho nos encontramos com nossa alma. Quando a reconhecemos, nos abraçamos num abraço tão envolvente, tão profundo, tão intenso que nos fazemos um. Mas por sermos agora nós e nossa alma, e não podermos mais ser só nós ou só nossa alma, resultamos em mais um ainda, que é o termo da fusão de nós e nossa alma: o nosso espírito. Os três que agora somos um, nós, alma e espírito, celebramos nossa comunhão, com a dança da vida, a 72 pulsações por minuto.
Nesse momento, em que dançamos, estamos tão profundamente imersos em nós mesmos, que nada nos acordará da celebração da vida que estamos a fazer. Na verdade, estamos nascendo mais uma vez. Agora de uma maneira sutil, espiritual, imaterial, mas nem por isso menos intensa ou importante. Nesse outro nascimento nos encontramos com os elementos simbólicos fundamentais que dentro de nós darão formas às fisionomias que viremos a ter por toda a nossa vida. É aí que encontramos nossa índole; é aí que encontramos e sorvemos nossos sentimentos; é aí que vislumbramos nossos pensamentos e conhecemos-lhes a fonte; é aí que pela primeira vez acariciamos nossas sensações; é aí que somos apresentados e ligados à vontade e ao desejo; é aí que vemos já vívidas, as lembranças e para elas acenamos. Todos dentro de nós. Profundamente. Reunindo-nos em nós e celebrando nosso nascimento. Celebrando a nossa existência.  É aí que sorvemos o sopro da vida. À Vida abraçamos num abraço total. Também assim por ela somos abraçados. Em nós a vida se realiza, e realiza sua eterna tarefa de viver. Generosa nos mostra sua viagem desde a primeira célula que um dia pulsou. Generosa nos apresenta à memória o que um dia viremos a ser, para que nos miremos e que sejamos exatamente o que um dia, seremos. Nascemos aprendendo a nascer.
Aprendendo a nascer é modo de dizer. Pois a nascer ninguém aprende. Simplesmente se nasce.
 Mas ali no compadrio do nascimento social, real, material, e na intimidade do nascimento simbólico, onírico, espiritual, se aprende a aprender a nascer (mesmo que a isso ninguém aprenda). Ali, se aprende que dentro de nós estão as forças necessárias para conquistarmos o mundo depois que o mundo se acaba.  Ali aprendemos que na profunda entrega a nós próprios e às nossas mais íntimas verdades, mais nós mesmos a nós mesmos fazemos. Mais em nós mesmos nos tornamos. Aprender a nascer é isso: é aprender a tecer a fisionomia do vir a ser. É saber trazer para nós a vida. É saber levar à vida a nossa existência. É saber inspirar e trazer para nossa alma individual e levar ao espírito coletivo os ares das coisas novas que nós e a vida, juntos, devemos viver.
Que nós e a vida devemos viver é maneira de dizer... mas acho que vamos ter que falar disso depois, porque estou achando que o tempo tá mudando... e que está chegando a minha hora de... nnnnaaaasssssccccceeeeeerrrrrrrr.......
                                                       Luiz Felipe Jardim

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