sexta-feira, 30 de abril de 2010

Um olhar crítico sobre a arte contemporânea
ARTIMANHAS DO SENHOR  SAATCHI-
            Affonso Romano de Sant’Anna

[tracey-emin-my-bed]

Aqui na Saatchi Gallery, em Londres, estou diante da obra máxima da artista inglesa Tracey Emin. É um cama de casal (cama mesmo) totalmente desarrumada. Estão ali os dois travesseiros, os lençóis meio sujos, com manchas de sêmen, uma meia de mulher jogada em cima dos amarfanhados panos. Do lado da cama um tapete azul sobre o qual estão objetos vários: maços de cigarro, recortes de jornal, caixinhas de remédio, garrafa, camisinha, copos, tubo de geo KY, bichinho de pelúcia, enfim, tudo aquilo que a rodeou durante os quinze dias em que ficou ali fazendo amor,  bebendo e, deprimida, tentando se matar. Tudo isto  constitui a obra “Minha cama”(1988), adquirida por Saatchi, por  225 mil dólares na ocasião.

- Será que esses objetos e a desarrumação da cama estão ali milimetricamente colocados como no momento genial e epifânico em que essa obra prima da pós-modernidade foi concebida? Isto não  tem importância, respondem, a idéia é que importa. Ou será que, mais que a “idéia” é a “aura” que a publicidade conseguiu desencadear em torno dos objetos e da autora?

Num  outro lugar da Saatchi Gallery vejo outra obra da mesma artista: é uma foto  grande colorida, onde ela está sentada com as pernas abertas, coxas à mostra, tentando puxar para dentro de sua vagina um punhado de moedas e notas. O título do trabalho: “Consegui tudo isto”. Sigo me informando sobre ela e numa livraria encontro um livro com sua biografia e fico sabendo que nasceu em 1963, filha de um turco cipriota com uma mãe inglesa, a qual  gerenciava um  hotel de 80 quartos. Aos oito   anos, Emin sofreu abuso sexual, aos 13 foi violentada e passou a  zanzar pelas ruas tendo uma vida sexual promíscua. Suas depressões agravavam-se pelo fato de ter perdido um tio querido num desastre de automóvel. Mas hoje é rica e mundialmente famosa, um paradigma da arte ocidental, graças à esperteza de  Charles Saatchi e à mediocridade de muitos.

Sigo vendo outras obras de outros artistas igualmente considerados carros-chefes da arte  contemporânea. Em Londres, ir a Saatchi Gallery, é também uma obrigação turística. E lembro o que eu e outros temos dito, que não se pode analisar a questão da arte hoje sem considerar o sanduiche arte/turismo. Da mesma maneira que arte/publicidade é outro produto sanduiche que examinado, desvenda alguns mistérios da pós-modernidade.  Sem precisar lembrar que Andy Warhol veio da publicidade, informe-se que   Charles Saatchi foi considerado o maior publicitário inglês.  Conseguiu  até essa  façanha: adquirir o histórico prédio da prefeitura de Londres, à margem do Tâmisa e instalar aí a Saatchi Gallery- uma  espécie de feira de extravagâncias  onde coisas bizarras se  misturam com   obras de arte, como os quadros da portuguesa Paula Rego. Essa é a estratégia de marketing de Saatchi: misturar e desorientar para, desestabilizando o gosto e a opinião dos incautos, vender o seu produto. Por isto,  ali você pode encontrar uma ovelha conservada em formal dentro de uma caixa de vidro; um boneco como se fosse uma múmia deitado no chão enquanto um  gemido sai de algum lugar; as cerâmicas de pornografia boba de Grayson Perry; o gigantesco e inquietante retrato de uma “serial killer” feito com reprodução de mãozinhas de criança;uma sala onde imitações de tótens africanos  critica a civilização do “hamburger” ou, até mesmo, o quadro “A SantaVirgem Maria”, no qual Chris Ofilli retratou  uma Virgem Maria negra usando bosta de elefante, disseminando em torno da figura algumas imagens que parecem-se até borboletas, mas são pequenas bundas e vaginas aureolando a Virgem.  Quem acompanha a arte de nossos dias sabe do escândalo que isto provocou em Nova York,em 1999, quando o cidadão Dennis Heiner, se julgando insultado por aquela obra jogou tinta sobre a tela. Era tudo o que Saatchi e Ofilli queriam e precisavam. O prefeito Giuliani entrou na polêmica, e, pronto, a obra ficou famosa e Saatchi mais  rico. Portanto,  além do turismo e da publicidade estude-se, agora, outro ingrediente fundamental para certo tipo de arte- o escândalo. Estou, por exemplo, me detendo diante do quadro de Ofilli. Tirando  o escândalo, a publicidade e a pornografia intencional, concluo, é muito ruim como pintura.

Seria um trabalho teórico interessante percorrer todas as salas desse antigo palácio .Ha coisas boas e há formidáveis equívocos. E estou convencido que essa é a estratégia básica desse publicitário, que foi  um dos responsáveis pela eleição de Margareth Tatcher nos anos 80.  Seu objetivo é causar polêmica.Se houver alguma arte envolvida, muito bem. Mas isto é secundário. Evidentemente, ele influencia o mercado de arte e ganha muito dinheiro, além de passar a ser referência para a arte ocidental, o que não é pouco para qualquer ego. Alguém pode  insinuar que ele é hoje o que os papas e cardeais foram para a arte de outros tempos. Pois aprofunde-se a comparação e se verá não só a diferença, mas se entenderá melhor o “imbroglio” da pós-modernidade.

 Alguém pode alegar: mas a mistura de coisas tolas, pretensiosas, inúteis, apenas espetaculares com alguma coisa boa é típica de nosso tempo. Esta é uma observação passiva e  cômoda. De um intelectual, de um artista  e de pessoas informadas e sensíveis exige-se mais, espera-se capacidade de raciocinar diante do caos.

Numa das salas, por exemplo, estão charges publicadas na imprensa ironizando a mostra da  própria coleção Saatchi. São divertidíssimas. E têm uma função simbólica e cultural múltipla. Mostram a auto-ironia de  Saatchi. Ali o expectador faz também sua catarsis. Essas charges são melhores que muitas tentativas de ensaios críticos.Guardam o distanciamento que muitos críticos já não têm mais.
 Mas há  outras coisas intrigantes nesse parque pós-moderno de diversões. Há pouca gente por ali. E as pessoas saem tristes.

*-DESCONSTRUIR DUCHAM. Ed. Vieira& lent, Rio 2003

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