O
português das bulas
Deonísio da Silva*
Numa viagem que fizemos juntos, vi Frei Betto tomando um
suplemento vitamínico diferente do meu. Ele aparenta muito menos idade do que
os gloriosos sessenta e poucos aos quais acaba de chegar, mas o segredo da
juventude não está apenas naquele concentrado que toma e, sim, na meditação que
faz todos os dias.
Não lembro mais o que estava escrito na
embalagem do dele. O meu agora vem com o seguinte aviso: “atenção
fenilcetonúricos: contém fenilalanina”. Sem vírgula depois de atenção, como
está ficando cada vez mais frequente em avisos, inclusive do governo federal,
como naquele do tempo de FHC, que não tinha vírgula depois de “avança”, em
“avança Brasil”.
Quem escreve e quem ensina a ler, obrigação
específica de professores de língua portuguesa, recomenda o remédio quando não
se entende uma palavra: procurá-la no dicionário.
Vamos lá. O Aurélio não tem fenilcetenúria.
Fala, Houaiss: : “fenilcetenúria é uma doença hereditária caracterizada pelo
acúmulo no organismo de um aminoácido, a fenilalanina, e de seus derivados,
como o ácido fenilpirúvico, causada pela falta de uma enzima, e que pode gerar
problemas dermatológicos e neurológicos”.
A maioria dos dicionários comete o mesmo
erro das bulas: tudo é explicado, nada é entendido. Ou muito pouco. Precisamos
mudar o modo de explicações de uns e de outras.
De todos os que consultei, o que apresenta
linguagem mais clara para os leigos – a maioria dos que os consultam - é o
Michaelis, apesar do nome ser pronunciado, não “Micaelis”, mas “Michaelis”, com
som de “ch”: “doença devida a um defeito congênito do metabolismo da
fenilalanina, ou seja, digestão inadequada de um dos elementos da proteína do
leite. Também se chama idiotia fenilpirúvica”. Fenilanina, todos têm. Mas vejam
só o que diz o Aurélio: “Aminoácido natural, essencial, que contém anel
benzênico”.
Em 2006, publiquei um artigo em diversos
veículos da mídia, onde dizia: “as bulas de remédios são inúteis para os
consumidores. Além de trazerem informações desnecessárias e assustadoras, vêm
carregadas de advertências confusas, que podem abalar a confiança que os
clientes têm nos médicos. O objetivo é fornecer argumentos aos advogados dos
laboratórios em eventuais ações judiciais. Os consumidores que se danem”.
E acrescentava eu, então: “A bula deveria
prestar informações indispensáveis aos consumidores. Mas não o faz com
eficiência. A primeira dificuldade é o tamanho das letras. Quem lê as bulas?
Quase sempre as pessoas mais velhas. Ou porque vão tomar aqueles remédios ou
porque vão administrá-los a quem, mesmo sabendo ler, não entenderia o que ali
vai escrito. Os laboratórios não pensaram nisso ao escolher letras tão
pequeninas. Ou pensaram e quiseram economizar papel. Seus consultores diriam
‘otimizar recursos’.
Pois agora a Agência Nacional de Saúde
(ANVISA) definiu um novo modelo para as bulas. A resolução prescreve que as
bulas deverão ser impressas em letras Times New Roman, corpo 10, isto é, quase
o dobro do atualmente usado. As bulas terão um tipo de informações para os
pacientes e outro para os profissionais.
Foram incluídas também nove perguntas respondidas pela bula,
explicando quais as indicações do remédio e quais os males que ele pode
causar.
Alguém
na ANVISA leu o nosso artigo. E acatou todas as sugestões ali contidas.
* Deonísio da Silva, Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade
Estácio de Sá, é autor de dezenas de livros, entre os quais Avante, Soldados:
Para Trás (Prêmio Internacional Casa de las Américas), já publicado em
diversos países.
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