terça-feira, 5 de outubro de 2010


O português das bulas 


Deonísio da Silva*
 Numa viagem que fizemos juntos, vi Frei Betto tomando um suplemento vitamínico diferente do meu. Ele aparenta muito menos idade do que os gloriosos sessenta e poucos aos quais acaba de chegar, mas o segredo da juventude não está apenas naquele concentrado que toma e, sim, na meditação que faz todos os dias.
Não lembro mais o que estava escrito na embalagem do dele. O meu agora vem com o seguinte aviso: “atenção fenilcetonúricos: contém fenilalanina”. Sem vírgula depois de atenção, como está ficando cada vez mais frequente em avisos, inclusive do governo federal, como naquele do tempo de FHC, que não tinha vírgula depois de “avança”, em “avança Brasil”.
Quem escreve e quem ensina a ler, obrigação específica de professores de língua portuguesa, reco­menda o remédio quando não se entende uma palavra: procurá-la no dicionário.
Vamos lá. O Aurélio não tem fenilcetenúria. Fala, Houaiss: : “fenilcetenúria é uma doença heredi­tária caracterizada pelo acúmulo no organismo de um aminoácido, a fenilalanina, e de seus derivados, como o ácido fenilpirúvico, causada pela falta de uma enzima, e que pode gerar problemas dermatológicos e neurológicos”.
A maioria dos dicionários comete o mesmo erro das bulas: tudo é explicado, nada é entendido. Ou muito pouco. Precisamos mudar o modo de explicações de uns e de outras.
De todos os que consultei, o que apresenta linguagem mais clara para os leigos – a maioria dos que os consultam - é o Michaelis, apesar do nome ser pronunciado, não “Micaelis”, mas “Michaelis”, com som de “ch”: “doença devida a um defeito congênito do metabolismo da fenilalanina, ou seja, digestão inadequa­da de um dos elementos da proteína do leite. Também se chama idiotia fenilpirúvica”. Fenilanina, todos têm. Mas vejam só o que diz o Aurélio: “Aminoácido natural, essencial, que contém anel benzênico”.
Em 2006, publiquei um artigo em diversos veículos da mídia, onde dizia: “as bulas de remédios são inúteis para os consumidores. Além de trazerem informações desnecessárias e assustadoras, vêm carregadas de advertências confusas, que podem abalar a confiança que os clientes têm nos médicos. O objetivo é fornecer argumentos aos advogados dos laboratórios em eventuais ações judiciais. Os consumi­dores que se danem”.
E acrescentava eu, então: “A bula deveria prestar informações indispensáveis aos consumidores. Mas não o faz com eficiência. A primeira dificuldade é o tamanho das letras. Quem lê as bulas? Quase sempre as pessoas mais velhas. Ou porque vão tomar aqueles remédios ou porque vão administrá-los a quem, mesmo sabendo ler, não entenderia o que ali vai escrito. Os laboratórios não pensaram nisso ao escolher letras tão pequeninas. Ou pensaram e quiseram economizar papel. Seus consultores diriam ‘oti­mizar recursos’.
Pois agora a Agência Nacional de Saúde (ANVISA) definiu um novo modelo para as bulas. A res­olução prescreve que as bulas deverão ser impressas em letras Times New Roman, corpo 10, isto é, quase o dobro do atualmente usado. As bulas terão um tipo de informações para os pacientes e outro para os profissionais.

 Foram incluídas também nove perguntas respondidas pela bula, explicando quais as indicações do remé­dio e quais os males que ele pode causar.
Alguém na ANVISA leu o nosso artigo. E acatou todas as sugestões ali contidas.


 * Deonísio da Silva, Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, é autor de dezenas de livros, entre os quais Avante, Sol­dados: Para Trás (Prêmio Internacional Casa de las Américas), já publicado em diversos países.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Editoria-Literacia