BIENAL: URUBUS E ASSASSINATO (*)
AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
Essa 29 Bienal de
São Paulo- com urubus e cenas de
assassinato de políticos- traz algumas
questões que interessam a todos. Os
responsáveis por este evento (que atrai
tantos turistas e dinheiro quanto a Formula
1), não deveriam se contentar apenas com as notícias escandalosas e
policiais geradas pela exposição. Certamente que isto atrai público. Certamente
que a ideologia que governa este tipo de evento, se rejubila com isto. Mas
sempre se corre o risco de manter a discussão na superfície, naquilo que tanto
agrada à ideologia da pós-modernidade:- o espetáculo pelo espetáculo.
Paradoxalmente, a Bienal pretende ser
uma exposição de " arte" embora muitos dos que expõem seus
trabalhos lá, dizem que a arte já morreu.
Já
na Bienal anterior, que num artigo denominei de "bienal do
vazio"( e cujo nome pegou), perdeu-se a oportunidade de discutir o
"vazio", que os curadores reconheciam existir no cerne da produção
artística contemporânea. Na ocasião, tudo acabou na delegacia de polícia,
prenderam uns pixadores e não discutiram a fundo a questão do "vazio"
ou da "arte". (Quem quiser vá o Google que as notícias ainda estão lá
).
Esta nova Bienal
tem como tema "arte e política". Mas há uma distorção aí. Estão
discutindo "política" num sentido convencional, a política que os
políticos fazem e assim deixam de
discutir o que deveria interessar mais aos artistas, a "política" interna do sistema das
artes. Este tem problemas terríveis, o que demonstra que o ambiente artístico
não é uma reunião de querubins. Mas é
mais fácil fazer um desenho matando Fernando Henrique, degolando Lula ou uma
instalação com urubus, sem se questionar que outros urubus podem estar voejando
sobre o monturo de lixo e porcaria que se acumulam em certas galerias e
bienais.
Até
agora não li nenhuma análise critica tanto sobre os urubus na Bienal
quanto dos aviões encalhados em árvores
que Nuno Ramos expõe no MAM no Rio. Reportagens, sim, muitas. Mas análises,
cadë? Claro que as reportagem correspondem mais à "sociedade do
espetáculo". Noticia-se o bizarro,
pois isto vende jornais e revistas. Mas onde as análises críticas? Uns repetem
as intenções do autor. Mas de intenções o inferno e as bienais estão
cheios. Bem gostaria de ler uma boa
análise dessas obras, por duas razões: caso fossem procedentes me abasteceria
de informações e conceitos inovadores, caso contrário, talvez me animasse a
desmontar essas pseudo críticas
mostrando suas falácias retóricas e verbais.
O risco, como até
agora se constatou, é ver a discussão
dividida em duas partes: no caso dos "urubus" - as sociedades
protetoras dos animais, com razão, protestando e, do outro lado, o artista se
justificando; e no caso dos assassinatos simbólicos dos políticos, uns acenando
com a censura e outros dizendo que o artista está acima do bem e do mal. Isto,
convenhamos, é ficar na superfície do
fenômeno.
INDO MAIS FUNDO
Dito isto, volto à questão mal analisada da "arte&politca" como foi entrevista a partir dos desenhos do pernambucano Gil Vicente, nos quais ele aparece atirando em Fernando Henrique Cardoso, cortando a garganta de Lula e matando outros lideres mundiais como Nethanyahu, Armadinejad, Rainha Elizabeth e o Papa atual.
Há aí vários mal entendidos. Consideremos primeiro que esse episódio remete para algo conhecido no mundo antigo como "morte em efígie". Não se podendo destruir o réu, destruía-se sua imagem, arrasando sua memória. Mas não é a primeira vez que dentro da modernidade ocorre um crime semelhante. Em 1965 três pintores mataram Marcel Duchamp. Gilles Aillaud, Antonio Recalcati e Eduardo Arroyo pintaram oito quadros realistas nos quais surpreendiam Duchamp subindo uma escada, esmurravam-no, torturavam-no e jogavam-no escada abaixo nu. Duchamp, que propunha a morte da arte, não gostou de se ver morto ali. E analisando esse quadro/episódio no livro "O Enigma Vazio" (Ed.Rocco) eu dizia que não é matando, mesmo em efígie, o ícone da arte de nosso tempo que o entenderemos. O desafio é ir a fundo na sua vida&obra ( que foi o que tentei fazer). Além do mais, a violência dos três pintores insere-se no quadro violento dos anos 60/70 quando o pensamento totalitário à esquerda e à direita achava que pela força resolveriam problemas sociais e políticos.
Portanto,
preservando-se o direito do artista se expressar, mas alertando para as
consequências disto, não se pode deixar de ver na obra
daquele artista pernambucano um paradoxal exercício da violência. A meu
ver, deveríamos ter aprendido com a Revolução Francesa, com a russa, a chinesa
e cubana, que cortar a cabeça dos lideres é inócuo. Por outro lado, ressurge aí a síndrome voluntarista, perversa
e autoritária do "justiceiro" -figura que a sociologia estuda pertinentemente.
Isto posto é crucial trazer à discussão uma
pergunta: E' o artista um cidadão acima de qualquer suspeita? Ésta é uma
clara alusão ao filme de Elio Petri
("Indagine su un Cittadino al di Sopra di Ogni Sospetto"-l971).
Naquela película, um policial comete um
assassinato, e por pertencer aos altos escalões do sistema julga-se tão
incólume que até participa das investigações. Transpondo para o caso da Bienal
e da arte atual, pergunta-se: estaria o
artista acima de todas as leis sociais?
Para
começar a entender essa pergunta,
lembre-se que a ditadura recente
nos deixou uma marca deletéria:
depois de tanta repressão, caímos na
ânsia de repressão nenhuma. Mergulhamos no oposto. Por isto, o mote:
"é proibido proibir", que tem o seu charme juvenil, é um paradoxo,
pois proibir a proibição é exercitar a
proibição e a censura, só que do outro lado.
Por
sua vez, a ideologia da pós-modernidade,
alardeia que tudo é legitimo, que não há
fronteiras, nem valores, que as coisas se esgotam em si mesmas sem
qualquer outro compromisso que não seja hedonísta e narcísico. Portanto, um
vetor nacional e outro internacional se complementam em forjar uma ideologia de
época, que deve ser analisada cautelosamente.
Isto
nos leva a um outro aspecto já que esta
29 Bienal tem como tema ARTE E POLITICA. Ora, falar da política convencional é
fácil. Acusar políticos, verberar contra
os militares, é uma banalidade. Eles são
os " outros". No entanto, há um
enfrentamento político, igualmente urgente, dentro das artes. É'
necessário questionar o perverso sistema em que as artes se baseiam. Isto consiste em rever o poder dos curadores,
o sistema das galerias, as premiações, o critica universitária e jornalística,
a publicidade, a bolsa de valores que controla as obras, enfim, o "deus ex
machina" que hoje, mais do que nunca, aciona as artes- o mercado. Com efeito, a
esquizofrenia do sistema artístico e de
nossa sociedade, está nesse poema
do antipsiquiatra R.D. Laing:
Ele
estão jogando o jogo deles
eles
estão jogando de não jogar o jogo
se
eu lhes mostrar que os vejo tal qual eles estão
quebrarei as regras desse jogo
e
receberei a sua punição.
O
que devo pois é jogar o jogo deles
o
jogo de não ver o jogo que eles jogam.
Uma discussão
radical sobre POLITICA E ARTE passa pelo
exame interno do sistema das artes hoje e
tem que enfrentar certos paradoxos,
dilemas e sofismas. É' uma
operação tão arriscada e séria que pode levar a um suicídio histórico, a um
colapso do sistema. Ou, então, o que seria admirável: ao renascimento da
própria arte de uma forma para nós ainda inimaginável dentro das aporias atuais.
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